Em conversa no BDF Entrevista, o escritor fala sobre o fechamento das fronteiras na África, seu novo livro e o Brasil
José Eduardo Bernardes, no Brasil de Fato
Era uma decisão mais política do que outra coisa e que penalizava, principalmente a África do Sul
Mia Couto se diz um mediador, alguém que “coloca em diálogo, os diversos mundos que existem em Moçambique”. Tem sido esta a sua tarefa há quase 30 anos, quando lançou Terra Sonâmbula, seu primeiro romance e um dos mais importantes da literatura africana.
Neste ano, o vencedor do Prêmio Camões de 2013 lança no Brasil O Mapeador de Ausências, um livro de caráter biográfico, que representa uma volta do escritor à sua cidade natal, Beira, na região central do país.
A volta que deveria ser um resgate de suas memórias, se tornou uma homenagem aos seus pais, Fernando Couto e Maria de Jesus.
“A certa altura, eu comecei a perceber, enquanto construía o livro, que não era a cidade, era o meu pai e a minha mãe, que em um ambiente colonial e muito agressivo, de uma violência enorme, do ponto de vista social, racial, formaram o meu ser, a minha capacidade de estar atento aos outros, meu sentimento de pertencimento à Moçambique, à uma luta para derrubar esse sistema colonial. Tudo isso eu devo aos meus pais”.
Além do novo romance – e um outro livro de contos, que deverá ser lançado em breve – outras questões têm afligido o escritor. Biólogo de formação, Couto participou ativamente dos esforços de Moçambique para frear a pandemia de covid-19 no país.
Desde o início do avanço da doença, foram 154 mil casos diagnosticados e 1.944 mortes no país.
Com a descoberta da nova variante, “supostamente sul-africana”, ômicron, a primeira medida de países europeus e do norte global foi vetar voos e fechar fronteiras com as nações da África Austral, os países ao sul do continente africano.
Segundo Mia Couto, a medida é “completamente injustificada, uma coisa que não tem fundamento científico nenhum”, afirma.
“Era uma decisão mais política do que outra coisa e que penalizava, principalmente a África do Sul, mas todos os outros países desta região da África Austral. Quando nós sabemos que esses muros que se erguiam, essas barreiras que preveniam a existência de viagens, não iriam ter quase nenhum efeito naquilo que seria o controle, a contenção de alguma coisa que nem sabíamos onde havia sido originada, se na África do Sul ou em outro local, mas até agora ainda falta provar isso”.
No final de novembro, amostras colhidas na Holanda, em 19 de novembro, já mostravam a presença da nova variante em solo europeu, muito antes do registro e descobrimento da nova cepa por cientistas sul-africanos.
Apesar do baixo índice de vacinação no continente (apenas 6,6% da população dos 50 países está imunizada), a região nunca teve grandes surtos da doença, ao contrário dos continentes americano e europeu. Mesmo assim, explica Couto, a África nunca barrou o trânsito entre os países.
“A África podia ter feito o inverso, quando o centro da epidemia hoje está na Europa e nunca nos ocorreu, a nós africanos, parar esse movimento de gente que vinha da Europa ou que vai para a Europa”, diz. “A medida agrava a situação já muito carente desses países, que dependem muito do turismo e da circulação de bens e passageiros”, completa.
Na conversa gravada em 2 de dezembro, para o BdF Entrevista, o escritor ainda fala sobre o Prêmio Camões entregue à moçambicana Paulina Chiziane, como descobriu a literatura de João Guimarães Rosa, revisita a memória e fala de sua paixão pelo Brasil, apesar da “atitude do próprio presidente da República, que desvalorizou, negou a covid-19 e essa posição é realmente criminosa”.
“Quero dar um abraço no Brasil, o Brasil que eu aprendi a amar muito. Eu aprendi a conhecer melhor o meu próprio país visitando o Brasil, e o Brasil que deu tanto como contribuição cultural, musical. Vocês não podem imaginar o quanto Moçambique aprendeu a olhar para si próprio e a amar melhor o mundo e a vida por via do Brasil. Portanto estamos à espera de que o Brasil regresse a essa plenitude que foi roubada agora”.
Confira a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: Queria começar nossa conversa falando sobre um tema que tem dominado os noticiários no mundo todo, que é o isolamento do continente africano, principalmente a África Austral, os países do sul, após o descobrimento da variante ômicron. O senhor tem acompanhado de perto essa questão da pandemia, o efeito prático desse isolamento é devastador, não é?
Mia Couto: Logo quando isso foi anunciado, eu e um amigo, José Eduardo Agualusa, fizemos uma espécie de manifesto e publicamos isso nas redes sociais. Depois isso foi transformado numa coisa que correu, pelo menos nos países de língua portuguesa. Manifestamos nesse texto nossa indignação, porque não podemos ficar calados.
É uma coisa que nos parecia completamente injusta, completamente injustificada, uma coisa que não tinha fundamento científico nenhum, que era uma decisão mais política do que outra coisa e que penalizava, principalmente a África do Sul, mas também todos os outros países desta região da África Austral.
Quando nós sabemos que esses muros que se erguiam, essas barreiras que preveniam a existência de viagens, não iriam ter quase nenhum efeito naquilo que seria o controle, a contenção de alguma coisa que nem sabíamos onde havia sido originada, se na África do Sul, mas até agora ainda falta provar isso.
Mesmo que tenha sido, que tenha acontecido primeiro na África do Sul, estamos vendo o que está acontecendo e não é por aí. É preciso um controle mais rigoroso dos aeroportos, mas nunca fazer esta medida que agrava a situação já muito carente desses países, que dependem muito do turismo e da circulação de bens e passageiros.
A África podia ter feito o inverso, quando o centro da epidemia hoje está na Europa e nunca nos ocorreu, a nós africanos, em parar esse movimento de gente que vinha da Europa ou que vai para a Europa. Portanto, é a manifestação de alguma coisa que se somou a uma grande injustiça, que já estava presente, que é injustiça na distribuição das vacinas.
Não há que se esperar solidariedade de um mundo que produz esse tipo de egoísmo e que produz esse tipo de atitude, sempre centrada no mundo dos ricos, mas ainda assim, é surpreendente que tenha acontecido uma coisa destas.
Há algumas semanas, inclusive, descobriu-se que o vírus já estava em território europeu antes da descoberta da variante na África do Sul, que é uma descoberta importantíssima para a ciência, uma contribuição gigantesca que a África do Sul e os cientistas por lá deram.
Sem dúvida. Nós ainda vamos ter a história, clara, de como é que essa variante [ômicron] ocorreu, mas a primeira tentação é esta, que é muito forte, de culpar ao outro e sobretudo se esse outro vem de um país africano.
Eu imagino que, para a construção de pensamento que é dominante, ainda hoje nos países ricos, na Europa, seja difícil assimilar que, desta vez, aqueles que vêm contaminar os outros, a origem daquela coisa que é impura, dos contagiantes, não seja a África. A África tem muito pouco desta pandemia. A África não constitui um perigo. Sem nenhuma dúvida, a África está fora desse ponto suspeito.
Agora, é preciso dizer uma coisa para ser justo, a linha de clivagem, essa linha de fronteira, não é exatamente só entre África e Europa, porque muitos países africanos assumiram a mesma atitude da Europa, como Angola, que foi uma grande surpresa.
O senhor é biólogo de formação também, para além da brilhante carreira como escritor, e participou dos esforços do governo de Moçambique no combate à pandemia. Como foi esse caso de sucesso de Moçambique no combate à pandemia?
Neste caso também há uma coisa típica, digamos. Porque quando corre bem a África, nunca se põe em hipótese que também seja por causa de políticas boas que os africanos podem pôr em curso, podem assumir. Sempre se pensa que as razões que levam ao sucesso, por exemplo neste caso, tenham a ver com fatores naturais, isto é, o sol, é a vitamina D, é o clima.
São fatores de ordem social que, na verdade, têm alguma influência. Por exemplo, a África é um continente muito jovem. Em Moçambique, a pirâmide etária tem uma base enorme, cerca de 60% dos moçambicanos têm menos de 20 anos, então isso marca uma diferença com países que são muito envelhecidos e, portanto, mais vulneráveis à transmissão e, digamos assim, ao agravamento da doença.
Mas, na verdade, eu viajei pela Europa quando esta pandemia começou, há dois anos atrás e passei pelos países que já estavam em uma situação gravíssima, como a Itália, nem sequer consegui ir ao lugar de destino, que era a Bolonha e tive que ir mais para o sul da Itália, depois fui para França, e a França também já tinha uma situação grave, Portugal depois também.
Por esses países, eu passei sem ter que fazer nenhum controle, sem ter que fazer uma apresentação de documento, sem nenhuma informação. Eu cheguei a Moçambique, que ainda não tinha nenhum caso da doença e nesta altura, Moçambique já tinha mecanismos muito claros de controle na entrada do aeroporto, de informação.
Portanto eu acho que nós tivemos uma política que não teve que recorrer a medidas draconianas, mas que foi uma política de absoluto controle da situação epidemiológica, está longe de ser o Brasil, que a gente sabe que começa pela atitude do próprio presidente da República, que desvalorizou, negou, etc, e essa posição é realmente criminosa.
O senhor chegou a comentar também sobre a questão das vacinas. Destoando de boa parte do mundo, onde, fora exceções de movimentos antivacina, as campanhas correm bem, no continente africano, alguns países não chegam a 3% de vacinados. Isso tem um peso enorme no surgimento de novas variantes, não?
Sem dúvida, quando eu assisto a alguns noticiários televisivos da Europa, eu fico espantado com a naturalidade com que se discute a 4ª dosagem e se discute se deve vacinar crianças e adolescentes de 7 a 12 anos, vamos dizer. Enquanto que, no continente africano, a porcentagem de gente que está por vacinar é enorme. E aqui, nem era preciso ser muito solidário, bastava ter bom senso, para perceber que esta pandemia, ou termina em todo lado, ou não pode terminar em um só continente.
Portanto, se a situação na África for esta, é muito natural que possam surgir outras variantes, porque o grau de vacinação é muito baixo. E temos situações como Botsuana, que é um país que tem algum recurso, não é um país tão pobre na África, que comprou as vacinas, não estava à espera de alguma doação, ou do mecanismo Covaxin e viu a sua carga ser desviada para os países ricos.
Há aqui coisas que precisam ser colocadas em cima da mesa, faz falta uma União Africana, a entidade correspondente à União Europeia no nosso caso africano, não ter se pronunciado. É um espanto para mim, o fato de que a única voz que se indignou foi do presidente sul-africano, tudo isso é muito estranho.
Agora nós somos penalizados, quando eu digo nós, não falo só da África, mas do mundo. Em uma situação pandêmica como esta, era imprescindível ter uma organização internacional centralizada, com crédito, com força política, que pudesse conduzir uma ação coordenada entre os países, mas a OMS foi vazada, foi destruída, a partir de fora, principalmente.
No teu novo livro, O Mapeador de Ausências, você faz uma relação direta com a tua história, de uma maneira quase biográfica, como foi retomar essa história e voltar à Beira?
Beira é minha cidade Natal, é uma cidade pequena que existe aqui no centro do país. Do ponto de vista cultural e linguístico é praticamente um outro mundo. Eu vim para a capital estudar quando eu tinha 17 anos, porque não havia universidade na Beira. E vim estudar medicina e não voltei mais, a não ser em visitas de família e amigos, mas é a minha terra, minha cidade.
Eu sabia que ia fazer esta viagem de regresso por via da literatura e voltei pensando que eu ia fazer uma celebração em livro, uma celebração a essa cidade onde mora a minha infância até hoje. Essa infância é o território onde eu regresso, se é que a palavra regressar pode ser dita com propriedade, mas eu estou lá ainda, nem sequer é um regresso.
Enquanto eu escrevia o livro, fui verificando como é que a memória falsifica e cria uma outra verdade sobre aquilo que é o tempo passado. Em um certo momento eu até fui com os meus dois irmãos – eu sou irmão do meio – para confirmar se aquela casa que eu pensava que era a casa onde nós tínhamos, por exemplo, nascido, onde a minha tia tinha adoecido, e eles negavam tudo isso.
Eu sou o menos dotado de memória dos três irmãos e eles diziam: “Não, nós nunca vivemos nesta casa”. E, para mim, era absolutamente verdade que aquela casa tinha uma ligação com a minha vida.
A certa altura, eu comecei a perceber, enquanto construía o livro, que não era a cidade, era o meu pai e a minha mãe que, em um ambiente colonial e muito agressivo, de uma violência enorme, do ponto de vista social, racial, etc, essas duas criaturas que tinham vindo de Portugal, exilados por uma razão de ordem política, porque prevalecia em Portugal uma ditadura colonial e fascista.
E eles ensinaram, sem nunca proclamar, sem que isso surgisse como uma doutrina, ou qualquer coisa, nos ensinaram – a nós três – pelo exemplo, que aquelas pessoas que eram desvalorizadas, que eram afastadas da cidade, inclusive do ponto de vista físico, porque os negros não podiam viver na cidade dos brancos e não podiam circular depois das 9h da noite, tudo isso era uma marca, era uma ferida que eu precisava revisitar e os meus pais mostravam que essa gente existia, que era importante e era gente visível.
Portanto, a essa aprendizagem eu tenho que prestar homenagem, foi aí que tudo começou, o meu ser, a minha capacidade de estar atento aos outros, meu sentimento de pertencimento à Moçambique, à uma luta para derrubar esse sistema colonial, tudo isso eu devo aos meus pais.
E por isso, eu percebi que aquilo que, para nós, era uma certa ausência, sobretudo da parte do meu pai, porque meu pai era uma pessoa tão delicada, tão gentil, que parecia que não estava presente, nós pensávamos que tínhamos do meu pai essa memória, que também era uma memória falsa, de que ele não tinha estado tão presente quanto era preciso, mas, na verdade, aquilo era uma marca, digamos assim, aquilo era a sua maneira de nos ensinar a ver o mundo e ele não precisava impor a sua presença. Portanto, no fundo, o mapa que ele nos deu para a vida foi feito com essa aparente ausência.
Eu vi em algum lugar uma comparação entre o senhor, Mia, e o escritor brasileiro Guimarães Rosa. Dois homens altamente letrados e que falam de lugares populares, sem o abuso da linguagem refinada, com obras permeadas pela cultura popular. Como é trazer na sua obra a cultura popular, as vozes dos povos?
Eu, na verdade, tenho uma dívida enorme com o Guimarães Rosa. Ele foi um mestre e surgiu de uma maneira muito curiosa, porque foi uma triangulação. Eu cheguei ao Guimarães Rosa depois de encontrar um angolano, que foi muito marcado pelo Guimarães Rosa, que é o Luandino Vieira e ele próprio me disse: “Não, vai buscar a fonte”.
E a fonte, ele mandou uma fotocópia de um conto – porque nós não recebíamos aqui os livros vindos do Brasil – e eu recebi A Terceira Margem do Rio em fotocópia e aquilo foi realmente muito importante para mim, foi uma espécie de licença, uma autorização para fazer esse trabalho.
Esse não é um trabalho de linguagem, é um trabalho de pensamento, sobretudo para deixar que essas vozes, que essa força da oralidade, que não tem nada de exótico ou de folclórico, mas tem a marca de uma produção de um outro saber – há ali um outro saber – e esse saber pede uma outra linguagem e por isso é preciso desconstruir a narrativa, que são os padrões da língua portuguesa e os padrões daquilo que é narrativa. E, sobretudo, desfazer um pouco aquela fronteira equivocada entre prosa e poesia.
Em Moçambique isto é importante, como é importante no mundo do sertão do Guimarães Rosa. É que essas pessoas que eu quero contar histórias, que estão dentro de mim, não estão fora de mim, essas pessoas acreditam que o rio é uma entidade viva, que o rio tem voz, que a montanha fala, que é possível conversar com uma árvore.
Tudo isso não tem nada a ver com realismo mágico, tem a ver com um outro modo de olhar o mundo, que aqui ainda é muito dominante, não é uma coisa dos povos indígenas que estão numa reserva, estão afastados numa floresta qualquer, eles estão vivendo todos os dias conosco, essas pessoas somos nós, estão nas cidades, que falam suas línguas indígenas e, portanto, é uma cultura que está muito viva e infelizmente ainda está subordinada a essa outra cultura, que é mais europeizada.
Recentemente, a Paulina Chiziane recebeu o Prêmio Camões, imagino que um orgulho e tanto para todos os moçambicanos – o senhor também já ganhou essa honraria. Qual é o peso dessa vitória para a literatura africana e literatura moçambicana?
Para nós, para Moçambique, sim. Mas para a literatura africana, não sei. Porque, infelizmente, a África vive muito separada entre os universos das três grandes línguas europeias que são faladas na África. Você tem a África francófona, anglófona e lusófona, e elas não falam umas com as outras. Então, o Prêmio Camões, eu não sei se ele é muito conhecido junto aos países anglófonos e francófonos da África.
Agora, para nós, e eu acho que para a língua portuguesa em geral, a Paulina ter ganho este prêmio é de uma importância absoluta, porque não só se dá um prêmio a uma escritora, em primeiro lugar é preciso que seja dito isso, é a uma obra, a um percurso de alguém que foi a primeira moçambicana a escrever um romance, e para fazer isso ela teve que se impor, teve que lutar contra preconceitos dentro do nosso próprio país. Existe uma mentalidade patriarcal muito forte.
Portanto, é uma vitória não só da Paulina, mas das mulheres moçambicanas, desta outra visão mais feminina de ver o mundo e é também a primeira pessoa que eu conheço que ganhou o Prêmio Camões, cuja língua materna não é a língua portuguesa. É a primeira pessoa negra, é uma das poucas mulheres que ganhou esse prêmio.
Por todas essas ações, pelo fato também de eu ser amigo dela, de ser um companheiro de luta desses anos todos – nós somos da mesma idade, nós somos da mesma geração de 55 e dividimos também um outro prêmio, que é o Prêmio Nacional de Literatura de Moçambique – é uma coisa que me deixou muito feliz.
Há um conflito, neste momento, no norte de Moçambique, que já deixou quase 1 milhão de refugiados e muitos outros mortos, calcado no extremismo religioso, principalmente no extremismo Islâmico e alguns atentados inclusive foram reivindicados pelo Estado Islâmico. Esse é o tema do teu próximo livro de contos, certo?
Esse livro de contos, no fundo, eu acho que continua, é simplesmente mais um passo no caminho que eu tenho estado a trilhar, que é o caminho que compete a mim, que é o caminho de colocar em diálogo, em conversa, esses mundos diversos que existem em Moçambique.
Existem 25 línguas vivas em Moçambique que são faladas, 25 modos culturais diferentes, há diferenças étnicas, há diferenças raciais, há diferenças religiosas profundíssimas, mas elas têm formas de conviver e criar harmonias. Então eu funciono um pouco como um tradutor dessas diferenças.
Eu acho que posso ter um pé em diversos mundos e isso é um privilégio que eu tenho, colocar a serviço dos outros, a serviço do meu próprio país. Então, esse livrinho fala um pouco disso.
O que está acontecendo no norte é uma coisa muito difusa, porque tem essa dimensão de um conflito ligado a um fundamentalismo Islâmico extremo sim, é isso, mas infelizmente não é só isso, é uma coisa que mistura muitas razões e o que eu posso dizer é que, infelizmente para nós próprios moçambicanos, parece que esse norte é um pouco longínquo, parece que isso é alguma coisa que acontece dentro de nós mas não…
Há um milhão de pessoas que foi deslocada e nós estamos a reviver uma coisa que já aconteceu antes. Durante a Guerra Civil (1977 – 1992), cerca de 20 anos atrás, nós tivemos cinco milhões de pessoas deslocadas e essas pessoas foram encontrar refúgio nos países vizinhos nossos, que são, em geral, países pobres e você não teve notícia disso no mundo.
Hoje, qualquer movimento de migração na Europa que temos, quando africanos que cruzam o Mediterrâneo são notícia, são motivo de espanto, de criação de medos e de apelos ao fechamento [das fronteiras] e da fortaleza que é a Europa. Mas você nunca ouviu falar desse grande drama, desses cinco milhões de moçambicanos que viveram durante anos fora do país e só puderam regressar depois de 1994. Desde 1980, até 1994 estiveram numa condição de pobreza extrema e absoluta vulnerabilidade.
Um pouco dessas histórias minhas querem resgatar esta enorme injustiça e desfazer essa ilusão que vivemos num único único mundo, em uma aldeia global e isso não é verdade, infelizmente vivemos em mundos que são apartados, que se ignoram mutuamente.
Mas quero dar um abraço no Brasil, o Brasil que eu aprendi a amar muito, que eu aprendi a conhecer melhor o meu próprio país visitando o Brasil, e o Brasil que deu tanto como contribuição cultural, musical.
Vocês não podem imaginar o quanto Moçambique, através dos vossos escritores, dos vossos poetas, dos vossos músicos, dos vossos cineastas, o quanto Moçambique aprendeu a olhar para si próprio e a amar melhor o mundo e a vida por via do Brasil. Portanto estamos à espera que o Brasil regresse a essa plenitude que foi roubada agora.
Edição: Leandro Melito