O novo Chile; Como a esquerda e seus ex-líderes estudantis chegaram lá

O novo Chile; Como a esquerda e seus ex-líderes estudantis chegaram lá

O novo Chile

Revista Piauí, por Marcelo Casals  – Em outubro de 2019, o velho Chile inesperadamente ruiu. Um aumento na tarifa do metrô na capital Santiago deu início a semanas de protestos liderados por estudantes secundaristas, que instigavam os passageiros a pular as catracas. À medida que as manifestações ficavam maiores, o governo de direita do empresário Sebastián Piñera respondeu com o uso desproporcional da força policial. Então, no dia 18 de outubro, o governo mandou fechar todas as estações, deixando milhões de pessoas nas ruas sem ter como se locomover. A decisão se revelou um erro fatal. Em questão de horas, os protestos se tornaram gigantescos. Quando a noite chegou, barricadas foram erguidas em bairros pobres e de classe média. Na manhã seguinte, diversas estações de metrô nas periferias da capital estavam em chamas. Foi o começo violento daquilo que seria chamado de estallido social (explosão social).

Os meses de protestos que se seguiram deram início a uma crise em gestação desde o começo do século XXI. A ordem que estava sendo colocada em xeque era o Chile neoliberal, planejado durante a longa ditadura militar iniciada em 1973 e que, com algumas reformas, continuou após a transição negociada para a democracia em 1990. O símbolo mais tangível desse período é a Constituição ratificada no fraudulento plebiscito organizado pela ditadura de Augusto Pinochet em 1980. O documento consolidou uma mescla de democracia limitada e economia de mercado, orientada pelos interesses de grandes corporações. A Constituição devolveu ao mercado direitos sociais anteriormente garantidos pelo Estado e, ao mesmo tempo, enfraqueceu os direitos trabalhistas e sindicais, dificultando a organização dos trabalhadores.

Sendo assim, não é coincidência que o levante, embora deflagrado pelo aumento da tarifa, tenha se organizado em torno da pauta de uma nova Constituição. Menos de um mês depois do início dos protestos, o governo concordou em convocar um plebiscito para que a população dissesse se a Constituição devia ser substituída ou não. Uma imensa maioria (78%) aprovou a medida em outubro de 2020. Em maio do ano seguinte, os chilenos voltaram às urnas para eleger os membros de uma Assembleia Constituinte.

Os resultados foram surpreendentes. A direita conquistou menos de um terço das cadeiras (algo impensável poucos anos antes), perdendo seu tradicional poder de veto, ao passo que os candidatos independentes e de esquerda tiveram avanços significativos. Embora algumas alianças tenham sofrido ligeiras modificações nos últimos meses, ainda há um sólido bloco majoritário identificado com as demandas populares articuladas durante o estallido. Em vista do teor antineoliberal dos protestos e da vitória do político de esquerda Gabriel Boric, de 36 anos, nas eleições presidenciais de dezembro passado, o processo constitucional é uma excelente oportunidade para a esquerda chilena moldar um novo pacto social.

O Chile experimentou uma relativa calma durante as quase três décadas que seguiram a transição para a democracia. O primeiro governo eleito, em 1989, liderado pela Concertación de Partidos por la Democracia – a coalizão de centro-esquerda forjada durante a ditadura militar como bloco de oposição moderada –, teve sucesso em tirar Pinochet e os militares do poder. Porém, muitos dos economistas, ideólogos e tecnocratas da Concertación, ao assumirem o comando da nação, decidiram – por convicção ou por medo – manter as linhas mestras da ordem econômica estabelecida sob Pinochet.

A história desse modelo é bem conhecida: os chamados Chicago Boys, um grupo de economistas que segue a escola neoclássica,[1] haviam convencido a ditadura a reformar a economia a favor das grandes corporações. Pinochet e os militares implementaram a rápida privatização da educação, da previdência social e da saúde. Ao privatizar dezenas de estatais, o governo criou uma nova oligarquia e construiu uma base de apoio importante para o autoritarismo.

Na década de 1990, o autoritarismo conquistou a legitimação democrática que não tinha. Essa consolidação foi avalizada por um ciclo de expansão econômica que melhorou radicalmente as condições materiais de vida da maioria dos chilenos. A pobreza foi reduzida a níveis nunca atingidos na história do país, e o consumo aumentou em todas as classes sociais, graças à disponibilidade de crédito. A classe empresarial também contou com condições favoráveis para o acúmulo de riqueza. Talvez a política mais controversa desse período tenha sido o uso, para fins de especulação, dos imensos recursos das Administradoras de Fundos de Pensões (AFP), fundos previdenciários obrigatórios que haviam sido privatizados. Por alguns anos, o livre mercado, a estabilidade social e a forte desigualdade pareceram perfeitamente compatíveis.

No mesmo período, a esquerda sofreu as consequências de uma divisão iniciada na época da ditadura. A derrota do projeto revolucionário da Unidade Popular (UP), coalização que apoiou o governo de Salvador Allende (1970-73), levou a um longo período de reflexão e autocrítica na esquerda. O Partido Comunista do Chile (PCCH) e outros grupos radicais lamentavam a falta de uma política consistentemente militante e insistiam na necessidade de lançar mão de “todas as formas de luta”, incluindo a violência, no combate à ditadura.

O fracasso dessa estratégia, somado à derrocada da União Soviética, deixou o PCCH isolado durante a década de 1990 e o início dos anos 2000. Enquanto isso, alas significativas do Partido Socialista (PS), a legenda histórica de Allende, passaram por um processo de “renovação”, renunciando ao marxismo e ao horizonte revolucionário em favor da democracia liberal. Os socialistas entraram numa aliança com os democratas cristãos (que tinham apoiado o golpe dado por Pinochet em 1973, mas se afastaram da ditadura pouco tempo depois), formando um bloco de oposição democrática e anti-autoritária. O PS e o Partido Democrata Cristão (PDC) foram a base da Concertación, que concordou em participar de um plebiscito, realizado em 1988, sobre a permanência de Pinochet no governo.

Graças a uma imensa mobilização e à pressão internacional, a oposição a Pinochet ganhou – 56% dos chilenos votaram contra a extensão do governo do ditador. No ano seguinte, a Concertación venceu com facilidade as eleições presidenciais, que foram o ponto de partida de vinte anos de poder para a coalizão. Mas os governos da Concertación hesitaram em forçar grandes mudanças ideológicas. Em vez disso, mantiveram os pilares centrais do modelo neoliberal, legitimado por um novo, embora limitado, sistema democrático.

Enquanto os partidos da esquerda permaneciam divididos, a insatisfação com a democracia neoliberal manifestou seus primeiros sinais. Muitos jovens estavam afastados do sistema político. Na primeira década do século XXI, a apatia se transformou em raiva, especialmente entre os estudantes secundaristas e universitários do sistema educacional privatizado que segregava classes sociais.

A Revolução dos Pinguins (assim batizada em razão das cores dos uniformes escolares), em 2006, foi o primeiro indicativo de um descontentamento mais profundo. Centenas de milhares de pessoas marcharam em protesto contra as mensalidades escolares e pedindo a construção de um sistema educacional de qualidade para todos. A Concertación, que estava em seu quarto mandato consecutivo, conseguiu evitar a ampliação do conflito fazendo pequenas reformas e prometendo melhorias futuras.

A situação mudou em 2010, quando Piñera foi eleito presidente. Ele levou para o governo os herdeiros da ditadura de Pinochet, expondo os mecanismos de acumulação e mercantilização antes ocultos sob um verniz progressista. No ano seguinte, protestos liderados por movimentos sociais independentes dos partidos políticos da transição eclodiram em todo o país, coincidindo com mobilizações em outras partes do mundo, como a Primavera Árabe e o Occupy Wall Street.

Movimentos ambientais começaram a se mobilizar contra o modelo econômico extrativista e a destruição da natureza. E o que mais chamou a atenção: universitários foram às ruas mais uma vez para protestar contra a segregação de classes produzida pelas altas mensalidades cobradas pelas faculdades particulares e públicas, que geravam onerosos endividamentos, geridos por bancos privados. Para a geração seguinte de líderes políticos, forjada por esses protestos, da qual Boric faz parte, estava claro que os fracassos do sistema educacional eram parte de um problema mais amplo relacionado aos limites e às inconsistências da transição democrática.

A Concertación – rebatizada como Nueva Mayoría, com a inclusão do PCCH e outros partidos de esquerda na coalização – teve uma última oportunidade de responder de modo significativo aos protestos estudantis quando, mais uma vez, derrotou a direita nas eleições presidenciais de 2013. Michelle Bachelet (do Partido Socialista), que já tinha ocupado a Presidência entre 2006 e 2010, voltou ao poder com um mandato para fazer reformas, incluindo a educação gratuita e a substituição do sistema previdenciário.

Para tanto, ela teve o apoio de importantes líderes estudantis, incluindo aqueles que organizaram a Frente Ampla, uma nova coalizão política de esquerda – inspirada por movimentos como o Podemos da Espanha e o Syriza da Grécia –, que conquistou algumas cadeiras na Câmara dos Deputados. Mas a oposição unificada da direita, a corrupção no círculo mais próximo de Bachelet e a disposição conservadora de alguns tecnocratas da Nueva Mayoría conspiraram contra o projeto de reformas. O sistema de previdência social mal foi modificado e o objetivo de criar uma educação superior gratuita se transformou numa enorme transferência de recursos para universidades particulares.

Enquanto isso, os chilenos testemunhavam uma queda no prestígio das instituições que por décadas serviram como esteios do sistema político. A Igreja Católica perdeu sua autoridade moral com a revelação de abusos sexuais sistemáticos da parte de sacerdotes. As Forças Armadas e a polícia foram acusadas de desviar milhões do dinheiro público. Várias acusações de corrupção e financiamento ilegal de campanhas foram feitas contra empresários e membros da elite política, num país que se orgulhava da retidão de suas autoridades.

Ao longo de todo esse período, os protestos continuaram e se expandiram para fazer frente a outros problemas. O movimento No + AFP (Chega das AFP, as Administradoras de Fundos de Pensões) uniu centenas de milhares de chilenos em 2016 e 2017 para repudiar o sistema de previdência privada. Em Araucanía, a região do Chile com maior proporção de indígenas, os conflitos fundiários se intensificaram, e as demandas históricas do povo Mapuche ganharam apoio popular. E, em 2018, uma onda de feminismo radical percorreu o Chile.

Tudo isso ocorreu à distância dos partidos políticos da transição, que se reproduziam pacificamente dentro do aparato estatal e se afastavam cada vez mais das paixões e opiniões dos cidadãos chilenos. Essa desconexão se manifestou na abstenção eleitoral, oferecendo uma oportunidade para o ressurgimento da direita. Em 2017, Piñera reconquistou a Presidência numa eleição com baixo índice de comparecimento.

Nos anos anteriores ao estallido social – o levante de 2019 –, a ideia de substituir a Constituição começou a circular nos movimentos populares. Quando foi inicialmente sugerida, no entanto, durante os protestos estudantis de 2011, a proposta foi alvo de zombaria tanto da direita como de boa parte da velha Concertación. É preciso dar crédito a Bachelet, que em seu segundo mandato pretendia iniciar um processo constituinte, embora não tivesse a vontade política necessária para fazer com que fosse aprovado – e acabou vendo o projeto ruir junto com as reformas da previdência e da educação. O resultado dos protestos fez a ideia ressurgir como algo possível e urgente.

A ditadura militar de Pinochet em certo momento encarou a reforma constitucional com urgência semelhante. O governo ditatorial começou a trabalhar numa nova Constituição pouco depois de assumir o poder, em 1973, convicto de que o sistema democrático enraizado na Constituição de 1925 estava irremediavelmente obsoleto. A junta militar desejava eliminar a possibilidade de que um novo projeto revolucionário e anticapitalista, à semelhança do liderado por Salvador Allende, transformasse radicalmente as instituições econômicas e políticas, e até mesmo os corações e as mentes dos chilenos. No fim da década de 1970, uma pequena comissão criada pela ditadura apresentou os esboços iniciais da nova Constituição. Depois de modificar o documento para concentrar e expandir o poder do regime, Pinochet o ratificou por meio de um plebiscito sem eleitores registrados – as listas eleitorais haviam sido destruídas pela ditadura – e sem que houvesse uma oposição consentida.

Durante a contestação à ordem ditatorial, iniciada com enormes protestos nacionais em 1983, a demanda por uma nova Assembleia Constituinte começou a vir à tona. No entanto, a oposição moderada – a aliança entre o PDC e o PS – acabou aceitando o processo de transição previsto na Constituição de 1980, que resultou no plebiscito de 1988 no qual 56% rejeitaram Pinochet. O pragmatismo da coalizão foi motivado pela derrota da estratégia insurrecional da esquerda radical e pela repressão do governo aos protestos. Líderes moderados pressionaram por uma reforma nos aspectos mais antidemocráticos da Constituição – como o banimento de partidos marxistas –, recorrendo a negociações com o regime em 1989.

Essas negociações permitiram que uma série de mecanismos antidemocráticos sobrevivesse durante a transição da ditadura à democracia, entre eles a manutenção de senadores biônicos (ex-integrantes da Corte Suprema,[2] das Forças Armadas e de outras instituições estatais, todas marcadamente conservadoras), um sistema eleitoral que permitia à direita controlar metade do Congresso tendo cerca de um terço dos votos, e a impotência do presidente para remover o alto-comando das Forças Armadas.

Cientistas sociais da época chamaram esses aspectos da Constituição de “enclaves autoritários”. Algumas mudanças foram conquistadas em 2005 – como o fim dos senadores biônicos –, mais uma vez como resultado de negociações entre a velha Concertación e a direita. Mas a exigência de uma nova Constituição foi deixada de lado em nome da estabilidade política. Essa meta continuou sendo uma aspiração da esquerda (principalmente do PCCH e de outros pequenos grupos radicais) que estava excluída dos termos da transição.

Como a questão da mudança constitucional se tornou tão importante? Em primeiro lugar, por causa de seu valor simbólico, uma vez que a Constituição atual foi um projeto fundacional feito pela ditadura e desempenhou papel importante na transição incompleta para a democracia. Mas a Constituição também apresenta sérios problemas para uma democracia funcional, como as “leis orgânicas” que regulam aspectos centrais do Estado e da economia e um Tribunal Constitucional, composto por juízes conservadores, que bloqueia muitas das leis reformistas aprovadas pelo Congresso.

É importante lembrar que somente com os protestos gigantescos e disruptivos de 2019 o governo de direita foi forçado a abrir mão da ordem política desenhada pela ditadura. Mas o caminho que levou à formação da Assembleia Constituinte não foi fácil. A repressão aos protestos em 2019 incluiu declarações dramáticas de “guerra” da parte de Piñera, violações de direitos humanos e a presença das Forças Armadas nas ruas, o que lembrou os mais sombrios momentos da ditadura militar. Em meio a uma crise que se intensificava, o Congresso Nacional negociou o Acordo pela Paz Social e pela Nova Constituição, assinado em 15 de novembro, menos de um mês após o início dos protestos.

Boa parte da esquerda parlamentar, especialmente o PCCH e setores da Frente Ampla – a coalizão de esquerda composta por ex-líderes estudantis –, viu o acordo com ceticismo e se recusou a assiná-lo. Um dos pontos mais sensíveis era a exigência de maioria de dois terços dos delegados da Assembleia para a aprovação de novos artigos, algo que, tendo em vista o equilíbrio eleitoral do poder à época, parecia dar à direita um virtual poder de veto. Apesar dessas limitações, outros acreditavam que a situação oferecia uma oportunidade sem precedentes para pôr fim à democracia neoliberal da transição.

Foi assim que Gabriel Boric, um jovem deputado da Frente Ampla e ele próprio um ex-líder estudantil, viu a questão, quando, contrariando seu partido, assinou o documento. A decisão teve consequências surpreendentes para Boric, marcando o início de sua ascensão como liderança política nacional.

A posição de Boric foi compartilhada pela maioria dos chilenos. Num plebiscito realizado em outubro de 2020, quase 80% dos votos foram favoráveis à formação de uma Assembleia Constituinte. O Acordo deu início a uma série de acontecimentos que vão realizar um dos sonhos mais caros da esquerda: pôr um fim à Constituição de Pinochet.

Na eleição dos membros da Constituinte, que ocorreu em maio de 2021,[3] a direita foi reduzida a uma minoria sem o poder de veto a que tinha se acostumado. Por outro lado, as forças da esquerda independente – muitas das quais contavam com ativistas de fora de Santiago, antigos líderes dos protestos e acadêmicos progressistas – somadas aos partidos históricos da esquerda elegeram um grande número de delegados. Em aliança com representantes que ocupam cadeiras reservadas aos povos indígenas, essas forças puderam formar um bloco majoritário, embora haja diferenças importantes entre os grupos.

O resultado também teve impacto na corrida presidencial. A aliança de esquerda composta sobretudo pela Frente Ampla e pelo Partido Comunista (o Partido Socialista decidiu permanecer ao lado dos Democratas Cristãos)[4] conquistou uma quantidade impressionante de votos nas eleições primárias. Já a direita tradicional teve dificuldades para convencer os eleitores de que está aberta a reformas limitadas no neoliberalismo oligarca e reacionário que defendeu tão pouco tempo.

Em um sinal de aprofundamento da crise política da direita, um candidato de extrema direita, José Antonio Kast – que defende abertamente a ditadura militar, critica o governo Piñera e se identifica com o presidente brasileiro Jair Bolsonaro –, após ser derrotado na eleição presidencial do ano passado, agora lidera a reação conservadora contra os protestos e a nova Constituição.

Num resultado surpreendente, Kast recebeu a maior porcentagem dos votos no primeiro turno das eleições presidenciais – 27,9% –, ficando à frente de Boric, que obteve 25,8%. Boric, porém, acabou vencendo o segundo turno em 19 de dezembro com quase 56% dos votos. A sua eleição marcou o fim da ordem política da transição dominada pela direita tradicional e pela Concertación, que mais tarde virou Nueva Mayoría. Ainda assim, a força da extrema direita é um lembrete da fragilidade da ordem política chilena e da contingência dos ganhos conquistados pela esquerda. Há muito trabalho a fazer para construir uma alternativa viável à democracia neoliberal deslegitimada.

O processo constitucional é uma oportunidade histórica para a esquerda chilena por dois motivos. Primeiro, representa a institucionalização do conflito iniciado pelo levante de 2019. Apesar da natureza apartidária e até mesmo antipartidária dos protestos, a esquerda conseguiu se conectar com o novo senso comum criado pelo povo nas ruas e canalizá-lo como uma força para transformar a Assembleia Constituinte. Entre outras coisas, a esquerda é a força política mais bem preparada para defender as causas feministas, ambientalistas e indígenas que agora têm apoio majoritário, mas que foram em grande medida ignoradas pelos partidos da transição. Boric começa seu mandato presidencial em março. Junto com a esquerda, ele tem a oportunidade de consolidar a nova ordem constitucional a partir de sua posição no governo. Sua legitimidade será reforçada por uma Constituição que estabelece um novo papel para o Estado em questões de direitos e regulação de grandes corporações.

É bem possível que a Constituinte remova os traços mais salientes da Constituição de 1980, como os enclaves autoritários remanescentes ou a noção bastante rígida de propriedade privada, que permitiu a mercantilização do direito à água, dentre outras políticas. Outros aspectos decisivos da Constituinte são o reconhecimento constitucional dos povos indígenas, uma nova definição da sociedade e da família que permita mudanças legislativas, como a legalização do aborto, e limites efetivos e concretos para a exploração do meio ambiente por mineradoras transnacionais, madeireiras e empresas de pesca. Espera-se ainda que a Constituinte acabe com a dimensão mercantil da previdência social, da saúde e do sistema de educação. Todas essas demandas se alinham com a agenda tradicional da esquerda. Conflitos históricos hão de acontecer em breve dentro da forma constitucional de uma democracia social pós-liberal.

Entretanto, há também riscos políticos. A duração da Assembleia Constituinte e as divisões internas já ameaçam indispor uma grande fatia do público, o que pode afetar a legitimidade do texto que emergir dos trabalhos. A direita e a imprensa conservadora estão determinadas a desacreditar a Constituinte, usando quaisquer erros e atrasos para isso – e o apoio que Kast recebeu na eleição presidencial prova que eles fizeram avanços. Ao mesmo tempo, houve importantes desacordos dentro do campo progressista, especialmente durante o debate das regras que irão guiar o processo. A manutenção de um quórum de dois terços estabelecido na autorização original da Constituinte provocou debates exasperados na esquerda. Em futuras disputas, a esquerda terá de equilibrar a adesão a seus compromissos históricos e a necessidade de não colocar em risco o sucesso das deliberações.

Para além dos partidos, há também o risco de que certos aspectos da plataforma progressista acabem inspirando mais divisão do que unidade. A cientista política norte-americana Nancy Fraser escreveu sobre a diferença entre uma “política de reconhecimento” e uma “política de redistribuição”. A primeira, que tem amplo apoio na geração mais jovem, valoriza a diversidade e a diferença. Essas aspirações vêm da esquerda, é claro, mas não deveriam ser seus únicos objetivos. Se não for acompanhada de uma política de redistribuição – que visa melhorar as condições sociais e materiais e diminuir o poder das grandes corporações –, a política de reconhecimento pode acabar afastando alguns eleitores. Para isso, o bloco de esquerda na Constituinte deve enfatizar mudanças à Constituição que estabeleçam direitos de sindicalização, direito à greve e outros regramentos que teriam impacto direto nas vidas de milhões de trabalhadores.

O processo no Chile está conectado a uma mudança política mais ampla na América Latina, que se manifestou de maneira diferente em cada país no ano passado – do levante colombiano[5] à eleição do professor e sindicalista Pedro Castillo no Peru e da líder de esquerda Xiomara Castro em Honduras. Há sinais de uma reestruturação global na esteira da pandemia de Covid, caracterizada pelo desejo de ter maior controle sobre os fluxos de capital e pela consciência da necessidade de reduzir a extrema concentração de riqueza e de levar as mudanças climáticas mais a sério.

Caso o mundo de fato entre numa fase pós-liberal – o que nem de longe pode ser dado como certo –, o Chile talvez sirva como um guia e um laboratório, assim como foi na segunda metade dos anos 1970, quando se tornou pioneiro nas reformas econômicas radicais do neoliberalismo. Hoje a esquerda chilena tem a oportunidade de ajudar a construir uma nova ordem que pode moldar as estruturas sociais, econômicas e políticas do país para os próximos anos, e provocar também importantes reverberações regionais e globais. Substituir a Constituição não é o mesmo que uma revolução, ou uma mudança imediata nas relações de poder. Mas representa a superação definitiva da longa ditadura militar e de seus legados neoliberais, e um imenso avanço na oportunidade de desenvolver uma agenda progressista robusta. É um momento para caminhar na direção do horizonte que uma boa parte da esquerda chilena sempre buscou: o socialismo democrático.


Artigo originalmente publicado na revista Dissent.


[1]  No Brasil, o ministro da Economia, Paulo Guedes, é um dos principais adeptos das ideias econômicas difundidas pelos Chicago Boys – como a intervenção mínima do Estado no mercado e a livre concorrência. Guedes fez seu doutorado em economia na Universidade de Chicago e deu aulas na Universidade do Chile no início dos anos 1980. (N. R.)

[2]  A Corte Suprema, composta de 21 ministros, é a máxima instância do Poder Judiciário. No Chile há ainda o Tribunal Constitucional, com dez ministros, responsável por aprovar qualquer alteração na lei máxima do país, analisar a constitucionalidade de projetos de lei e proteger os direitos fundamentais. No Brasil, o Supremo Tribunal Federal (STF) acumula atribuições equivalentes às exercidas no Chile pelas duas instituições. (N. R.)

[3]  Os trabalhos da Constituinte começaram em julho de 2021 e seus membros devem redigir o texto da nova Constituição no prazo máximo de um ano. (N. R.)

[4]  A Nueva Mayoría se dissolveu em 2018.

[5]  Uma série de protestos contra a reforma tributária do presidente Iván Duque tomou as ruas de várias cidades da Colômbia a partir de 28 de abril de 2021. O governo suspendeu a reforma, mas reagiu violentamente às manifestações, que passaram a reunir outras reivindicações, como as do sistema de saúde e de aposentadoria. A piauí publicou uma reportagem sobre o assunto na edição 178, de julho de 2021. Durante os protestos, 80 pessoas foram mortas, segundo a ONG colombiana Instituto de Estudios para el Desarrollo y la Paz), e mais de 2 mil, feridas. (N. R.)Marcelo CasalsAcadêmico radicado em Santiago, no Chile, é PhD em história da América Latina pela Universidade de Wisconsin Madison

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