Por Leonardo Sakamoto – Enquanto evita condenar a invasão russa, Jair Bolsonaro resolveu usar a guerra na Ucrânia para avançar em sua guerra no Brasil contra os direitos dos povos indígenas, reforçando assim o apoio que recebe do naco anacrônico do agronegócio. Desta vez, a desculpa não é a defesa da mineração de nióbio, mas de potássio para produzir fertilizantes.
“Com a guerra Rússia/Ucrânia, hoje corremos o risco da falta do potássio ou aumento do seu preço. Nossa segurança alimentar e agronegócio (Economia) exigem de nós, Executivo e Legislativo, medidas que nos permitam a não dependência externa de algo que temos em abundância”, afirmou ele no Twitter, nesta quarta (2).
Para tanto, defendeu que o Congresso aprove o projeto de lei 191/2020 que facilitar a mineração, o garimpo, a construção de barragens, o desmatamento e agropecuária em territórios indígenas.
Uma coisa é a necessidade urgente de reduzir a dependência externa para a produção de fertilizantes – importamos mais de 95% do cloreto de potássio usado na agricultura. Outra é jogar nas costas da população indígena parte da responsabilidade pela situação de crise que podemos enfrentar por conta das consequências globais da invasão russa, como faz o presidente.
Uma quebra no fornecimento de fertilizantes russos ao Brasil, neste momento, por conta de problemas de logística ou de sanções, levaria a mais inflação nos alimentos. Porém, mesmo que o PL fosse aprovado agora, levaria anos para explorar as jazidas que Bolsonaro alardeia na Amazônia. Isso, claro, se forem encontradas reservas cujos potencial, extração e transporte sejam economicamente vantajosos.
E, convenhamos, Bolsonaro nunca se preocupou de fato com “segurança alimentar”. Foi ele quem suspendeu o auxílio emergencial, entre dezembro de 2020 e abril de 2021, exatamente no pior momento da pandemia, quando mais de 4 mil mortes eram registradas aqui por dia – o que, claro, gerou mais fome. Auxílio que era para ter sido de R$ 200, como queria seu governo, se o Congresso não tivesse aumentado o valor.
Bolsonaro adotou um falso “equilíbrio” em nome da importação do insumo russo para a agricultura. “Para nós, a questão do fertilizante é sagrada”, disse neste domingo (27). Ele poderia ter condenado a invasão russa e afirmado que não aplicaria sanções à importação de produtos por questões estratégicas nacionais, como faz o Itamaraty. Preferiu jogar fora das “quatro linhas”, ignorando o respeito à autodeterminação dos povos, previsto no artigo 4º de nossa Constituição.
Um de seus objetivos ao ir apertar a mão de Vladimir Putin em Moscou foi gerar um fato político com seu colega russo para ser usado junto a seus seguidores e eleitores, fãs do autocrata russo, com propósitos eleitorais. Agora, enquanto elogia o Kremlin e critica o presidente ucraniano em postagens para seguidores, Bolsonaro usa novamente a Rússia para criar um factoide eleitoral a fim de manter ao seu lado uma ala do agronegócio.
Desde o Congresso, Bolsonaro trava guerra contra indígenas por seus territórios
A guerra travada por Bolsonaro pelos territórios indígenas começou quando ele ainda era um folclórico deputado federal. E quando assumiu o controle do Poder Executivo, deu início a uma ofensiva que tem tudo para ser lembrada como as ações levadas a cabo na ditadura militar, negando-lhes terras, forçando sua aculturação, dificultando acesso a alimentos e medidas de proteção à covid-19 e permitindo a exploração econômica de suas áreas, mesmo à revelia.
“Ele devia ir comer um capim ali fora para manter as suas origens”, foi a resposta do então deputado Jair Bolsonaro após um indígena jogar água em sua direção, em maio de 2008, num bate-boca em uma audiência pública, na Câmara, para discutir a demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Quatro anos antes, durante outra reunião sobre o mesmo tema, Jair havia dito: “O índio, sem falar a nossa língua, fedorento, é o mínimo que posso falar, na maioria das vezes, vem para cá, sem qualquer noção de educação, fazer lobby”.
Na campanha eleitoral de 2018, prometeu a seus apoiadores do agronegócio não demarcar “um centímetro quadrado” de território indígena em seu governo.
Criadores de gado e fazendeiros de soja que operam na ilegalidade, madeireiros, garimpeiros e grileiros de terra sentiram-se empoderados pelos discursos de Bolsonaro, de que as terras indígenas devem ser exploradas por não-indígenas. O resultado é que a invasão de aldeias tem sido informalmente tolerada, causando violência e assassinatos e transmitindo doenças. Não só: Bolsonaro foi além e culpou os indígenas pelas queimadas na Amazônia em discurso na ONU.
Diante das reclamações por causa de invasões de garimpeiros a territórios indígenas ocorridas em seu governo, como aquelas contra a etnia Waiãpi, no Estado do Amapá, e os Yanomami, em Roraima, Bolsonaro tem dito que há um complô internacional para a transformação dessas áreas em países independentes a fim de que suas riquezas possam ser exploradas.
Os territórios indígenas (que são responsáveis pelas mais altas taxas de conservação ambiental do país) nunca realizaram um plebiscito ou montaram uma campanha de guerra contra Brasil, ao contrário do que faz o presidente diariamente. Pelo contrário, querem é mais atenção do governo federal, querem se sentir efetivamente brasileiros através da conquista de sua cidadania, o que inclui o direito à sua terra.
Em 28 de agosto do ano passado, o presidente ameaçou que pode descumprir decisão judicial do Supremo Tribunal Federal sobre o marco temporal caso os ministros garantam direitos dos povos indígenas às suas terras. “Se aprovado, tenho duas opções, não vou dizer agora, mas já está decidida qual é essa opção, é aquela que interessa ao povo brasileiro, aquela que estará ao lado da nossa Constituição“, declarou.
A tese do marco temporal defende que indígenas só podem reivindicar terras que já eram ocupadas por eles no dia da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988, ou áreas que já disputavam judicialmente naquele momento, apesar de nada disso estar escrito em nossa Carta Magna. Considerando que parte desses povos estavam expulsos de seus locais de origem naquele momento, na prática, isso é uma tremenda de uma sacanagem. O STF vem empurrando com a barriga uma decisão.
Projeto citado por Bolsonaro para facilitar mineração é condenado por entidades indígenas
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) condenou veementemente o PL 191/2020, afirmando que, por trás dele, está “a vontade de atender os interesses econômicos que impulsionaram a sua candidatura e sustentam o seu governo, mesmo que isso implique em total desrespeito à legislação nacional e internacional que assegura os nossos direitos fundamentais”.
Diz que o projeto relativiza a questão do consentimento dos povos ao uso de suas terras.
O PL também foi rechaçado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Em nota pública na qual criticou o discurso de Damares Alves, ministra da Mulher, Família e dos Direitos Humanos, na 49ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, nesta segunda (28), o Cimi afirmou que o projeto tem por objetivo enfraquecer a governança indígena e ambiental brasileira.
Damares apresentou o Brasil como um case de sucesso na proteção de indígenas durante a pandemia de covid-19 e de combate ao desmatamento, discurso que foi considerado pela entidade como “descolado da realidade e um desrespeito aos povos indígenas”.
“O vírus que chegou às aldeias e provocou inúmeras mortes foi levado para dentro dos territórios indígenas, em sua grande maioria, por invasores que seguem atuando ilegalmente nestas áreas em plena pandemia, livres das ações de fiscalização e proteção do governo”, disse o conselho em nota.
Uma mineração ou uma agropecuária que atue com baixo impacto e respeitando limites impostos pelos direitos fundamentais é a única saída para um Brasil que não queira continuar sendo visto como um pária internacional.
O problema é que isso bate de frente com a proposta de guerra no campo encampada por bolsonaristas, que usa força física e desinformação sobre todos os que se opuserem às suas necessidades econômicas. Em outubro, o futuro dessa guerra vai ser posto em votação.