Concentração de veículos na capital, falta de recursos e equipes reduzidas deixam sites vulneráveis à atuação de grupos de interesse no estado.
Por Jéssica Botelho, Infoamazonia
Apesar de abrigar parte considerável da floresta amazônica e a maior população indígena do país, sites e blogs no Amazonas ainda têm cobertura jornalística insuficiente sobre questões socioambientais. Esse é um dos achados do mapeamento que fiz para o projeto “Amazonas: mentira tem preço” em parceria com a comunicadora Dirce Quintino.
Há quatro anos sou pesquisadora da região Norte no Atlas da Notícia, censo da imprensa brasileira que já registrou mais de 13 mil veículos jornalísticos em todo o país. Nesse trabalho, em que atuo como coordenadora do levantamento nos sete estados nortistas, entre eles o Amazonas, revelamos a importância do jornalismo local na cobertura de temas ambientais e de crises, dentre outras descobertas.
A falta de produção jornalística no Amazonas, identificada no mapeamento realizado para o projeto “Amazonas: mentira tem preço”, abre espaço para a republicação, na íntegra, de releases, conteúdo elaborado pelas assessorias dos órgãos públicos e de políticos como propaganda institucional.
Essa é também a visão de Débora Salles, pesquisadora do Laboratório de Estudos de Internet e Redes Sociais (Netlab), da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com quem dialogamos sobre o tema. Ela destacou, em nossa conversa, que histórias relacionadas a conteúdos socioambientais raramente são abordadas de maneira original pelos veículos amazonenses.
A regra, diz, quase sempre é a reprodução de press release. “Nessa região [Amazônia Legal] a gente percebe uma presença muito grande dos releases, é a principal fonte de conteúdo. A produção dos próprios veículos é muito restrita.” Como saber se aquele conteúdo é um release? Vale olhar a assinatura da postagem e o crédito no final da mesma, que pode indicar se aquele conteúdo foi produzido por uma agência, como a Secom-Agência Amazonas, da Secretaria de Estado de Comunicação do estado.
Entre os fatores que colaboram para esta lacuna, a sustentabilidade financeira talvez seja a principal. Investigações a longo prazo exigem equipe, tempo e investimento – e, no Amazonas, os deslocamentos incluem logística em céu, mar e terra. Em consequência, as notícias mais quentes do dia, as “hard news”, são priorizadas pelos veículos de imprensa.
Com redações pequenas – em alguns casos formadas por apenas duas pessoas– e falta de recursos para a produção de conteúdo próprio, os sites do Amazonas dão espaço para a reprodução de conteúdo das assessorias, com destaque para a comunicação do governo do estado, que ganha terreno por meio de anúncios e distribuição de releases.
Questionado sobre a lista de sites em que veicula anúncios, o governo do Amazonas não se manifestou até a publicação deste artigo.
Registro das queimadas em Lábrea pelo fotógrado Edmar Barros, ameaçado por publicar as imagens da floresta pegando fogo
Outro componente é a complexidade dos temas socioambientais. Apesar de entrelaçados no quadro geral da região e estarem na cobertura nacional, cada assunto tem suas particularidades. Isso exige de jornalistas determinados conhecimentos que não são tão acessíveis.
Por exemplo, pautar a emergência climática passa por questões científicas – em áreas como Física e Biologia- e questões políticas no sentido de compreender negociações internacionais e implementação de políticas públicas no Brasil.
“A presença do veículo [jornalístico] em si fomenta o que é informação de qualidade na sociedade e, assim, dá competências para o cidadão atuar de forma crítica, independente e participativa.”
ALEXANDRE AMARAL, COORDENADOR NA ALIANÇA GLOBAL PARA ALFABETIZAÇÃO DE MÍDIA E INFORMAÇÃO DA UNESCO
Outro tema recorrente é o desmatamento. Embora exista oferta de dados (como os do Inpe e do MapBiomas), a cobertura demanda entendimento sobre as dinâmicas do problema específicas para cada região, sobretudo na Amazônia, onde o impacto sobre os direitos humanos é significativo.
Ou seja, para além de informações e dados para reportar o cenário atual, é necessário contextualização científica, identificar e ouvir atores sociais relevantes, conhecimento das legislações ambientais e dos agentes públicos responsáveis, entre outros.
CONCENTRAÇÃO DE VEÍCULOS DE IMPRENSA NA CAPITAL
Os dados do Atlas da Notícia apontam que há uma concentração da imprensa na capital amazonense. Em 2020, data base do nosso mapeamento, eram 184 veículos jornalísticos mapeados no estado, 137 estão sediados em Manaus, enquanto os 47 restantes estão distribuídos em 24 municípios.
Na quinta edição da pesquisa, recém-lançada com dados referentes a 2021, pouca coisa mudou. O Amazonas continua liderando em quantidade de veículos na região, com 195 deles registrados, dos quais 140 localizados na capital.
Nessa equação, mostra a pesquisa, municípios de pequeno porte (com população inferior a 50 mil habitantes) saem prejudicados, pois possuem poucos ou nenhum veículo produzindo conteúdo de interesse público a nível local.
Esses municípios, ainda de acordo com os dados mais recentes do Atlas da Notícia, são classificados como desertos de notícias. Ou seja, o estado com a maior extensão territorial do país tem mais cidades sem um único veículo de notícia que o contrário: são 35 municípios considerados desertos de notícias produtores contra 27.
Os municípios de Envira e Itapiranga eram considerados desertos de notícias até a edição anterior. Em 2021, foram identificados nessas cidades os veículos Envira News e Jornal Itapiranga News.
Para Alexandre Amaral, coordenador na Aliança Global para Alfabetização de Mídia e Informação da Unesco, a ausência de veículos de informação, em qualquer região, abre espaço para a desinformação.
“É preciso pensar o jornalismo não apenas como o veículo que traz notícia de confiança, mas como a presença do veículo em si fomenta o que é informação de qualidade na sociedade e, assim, dá competências para o cidadão atuar de forma crítica, independente e participativa.”
OS IMPACTOS DA DESINFORMAÇÃO
Após o discurso do presidente, moradores da Comunidade Maracajá, da Terra Indígena Alto Rio Negro (noroeste do AM), receberam visitas de militares do Exército que perguntaram como os indígenas faziam fogo e como eram feitos seus roçados. Esta situação foi relatada por uma liderança indígena da comunidade ouvida por nós em entrevista, realizada no município de São Gabriel da Cachoeira em novembro de 2021, e que prefere não ser identificada por medo de retaliação.
Organizações indígenas e indigenistas publicaram notas de repúdio apontando a criminalização dos povos indígenas, a exemplo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – Apib e do Conselho Indigenista Missionário.
Para Vera Moura, indígena do povo Tukano e integrante da Rede de Jovens Comunicadores da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira, é importante que a imprensa ouça os povos da floresta para que eles sejam considerados também como fontes de informação. “Seria bom que os meios de comunicação chegassem até as comunidades para conhecerem a nossa realidade e saberem o que pensamos a respeito disso.”
A desinformação no contexto socioambiental também encoraja o discurso de ódio contra cientistas, ambientalistas e lideranças de movimentos sociais, como aconteceu em Manaus.
Durante uma audiência pública sobre o licenciamento de obras na rodovia BR 319, que liga Manaus a Porto Velho (Rondônia), o pesquisador e biólogo norte-americano Philip Fearnside sofreu ataques xenofóbicos de Sérgio Kruke, representante do Movimento Conservador do Amazonas, depois de apresentar argumentos sobre as consequências das obras na estrada.
A obra, estimada em R$ 2 bilhões, pode aumentar em 1.200% o desmatamento ilegal na região, segundo pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia.
O ataque a jornalistas também é uma estratégia recorrente de intimidação e deslegitimação da imprensa. Em agosto de 2021, o fotojornalista Edmar Barros, que há 18 anos colabora com veículos de imprensa nacional e internacional, como Folha de S. Paulo e New York Times, foi jurado de morte por fazer seu trabalho.
Edmar Barros, fotojornalista jurado de morte no Amazonas
Barros registrou e divulgou fotos de queimadas no município de Lábrea, interior do Amazonas, uma das cidades mais desmatadas do estado. Por ameaçar interesses invisíveis de poderosos que lucram com a destruição da floresta, recebeu ameaças em seu celular.
Na mensagem, a pessoa diz que está “trazendo um recado do pessoal do 42” (quilômetro de uma região destruída próxima a BR-230). “Se você vier meter seu rabo aqui em Lábrea para denunciar as derrubadas, você vai queimar junto na queimada.” Na mensagem, a pessoa deu dois dias para Barros desaparecer da região. “Essa foi a primeira vez que fui ameaçado. Aquela região do sul do Amazonas eu chamo de terra sem lei”, diz.
CAMINHOS POSSÍVEIS
Em meio aos desafios impostos no exercício da profissão, alguns caminhos despontam como alternativas às lacunas de formação, de divulgação e até de financiamento.
Em Manaus, está a premiada agência de notícias independente Amazônia Real, que atua com jornalismo investigativo a partir da capital, onde está baseada, e dá voz às populações tradicionais desde 2013. A organização venceu prêmios importantes dentro e fora do país, como o Prêmio Rei da Espanha.
A Gazeta de Santarém e o Tapajós de Fato, no Pará, produzem com frequência conteúdos autorais sobre a Amazônia. A Gazeta desmentiu desinformação sobre defensores do meio ambiente.
A produção de podcasts também aparece na produção local. O boletim de notícias em áudio Wayuri é resultado do trabalho da rede homônima composta por 17 comunicadores indígenas de oito diferentes povos do Rio Negro e sua produção, em áudio e vídeo, chega a 750 comunidades da região. A equipe de comunicadores indígenas integra o projetoAmazonas: mentira tem preçoe é responsável pela produção dos podcasts.
O podcast Afluente apresenta episódios quinzenais focados na Amazônia, o programa jornalístico independente apresenta diversidade de vozes tanto para discutir temas de abrangência nacional, como a importância da floresta em pé, quanto para revelar questões invisibilizadas.
Outras iniciativas incidem na educação. É o caso do Caxxyri, coletivo de arte-educadores e agricultores urbanos em Manaus. Juntos, trabalham pela organização comunitária do bairro Coroado, em busca de melhorias para o dia a dia dos moradores. “Na ausência de um veículo jornalístico, é importante que pessoas da comunidade tomem a frente e se organizem para compartilhar e levar informação de confiança para todos”, diz Amaral.
A desinformação também foi fator determinante para a criação do projeto “Amazônia contra a Covid”, realizado pela Unesco Mil Allience, agência das Nações Unidas, e pela Universidade Federal do Amazonas em 2020. “Percebemos que núcleos de poder usam da desinformação para implementar o poder sobre os desprivilegiados”, afirma a pesquisadora Beatrice Bonami, que à época integrava a iniciativa.
O projeto incluiu a produção de conteúdos informativos em áudio e de uma cartilha, traduzida para 15 línguas indígenas, com enfoque nos cuidados em relação à Covid para populações ribeirinhas e indígenas no sul do Amazonas, que participaram da produção. Lideranças e jovens influenciadores receberam formação para serem replicadores de informação de qualidade. Junto da cartilha, as famílias recebiam uma caixa com alimentos e itens de higiene.
No campo da formação, a oferta de cursos, seminários, oficinas, entre outros tipos de atividades sobre temas socioambientais têm sido mais frequentes e se colocam como opções para quem deseja se especializar na área: Knight Center, Escola de Dados e Abraji.
Em Manaus, a Abaré, escola criada por jovens jornalistas, oferece cursos online focados em educação midiática e debates sobre o jornalismo feito no Amazonas. A instituição realizou, em parceria com o projetoAmazonas: mentira tem preço, a oficina Jornalismo, Fake News e Questões Socioabientais, que contou com 100 participantes em fevereito de 2022.
Há alguns fundos que financiam projetos de comunicação voltados para a cobertura socioambiental. Um deles é o Earth Journalism, que abre anualmente a seleção para produção de reportagens sobre o meio ambiente. Voltado para a região amazônica, há ainda o Amazon Rainforest Journalism Fund, do Pulitzer Center, que financia reportagens e projetos investigativos, e o Grid Arendal que oferece bolsas de jornalismo investigativo envolvendo crimes ambientais.
GUIAS, FERRAMENTAS PARA QUESTÕES SOCIOAMBIENTAIS
Cobertura sobre mudanças climáticas: vale conferir o manual feito pela Universidade Federal de Roraima e produzido pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
Cobertura de povos indígenas e comunidades tradicionais: guia socioambiental da imprensa, publicação criada pela Operação Amazônia Nativa
Dados socioambientais abertos: a Escola de Dados mantém um repositório de bases de dados e o Monitor de Dados Socioambientais do projeto Achados e Pedidos também publica bases de dados abertas via Lei de Acesso à Informação e relatórios sobre transparência ambiental.
Iniciativas em política e questões socioambientais: duas se destacam na análise de proposições legislativas e dos atos do Executivo. São elas: a Política por Inteiro e o Observatório do Legislativo Brasileiro.
*Colaborou Dirce Quintino