Projeto de lei que está para ser votado no Senado dá aval para devastação sem precedentes na Amazônia
Greenpeace
Uma área gigantesca no sul do Amazonas, mais precisamente no município de Lábrea, traz um raio-x de como a votação de um projeto de lei no Senado Federal pode fazer explodir o desmatamento e a violência, se tornando um símbolo do que está prestes a acontecer em toda a Amazônia.
A Gleba João Bento tem 295 mil hectares — o que equivale a cerca de duas vezes o tamanho do município de São Paulo. Glebas são terras do governo ainda não destinadas e geralmente gigantescas. Este imenso território tem sido alvo de grilagem por grupos criminosos desde a década de 1970. Em 2011, a área foi retomada pelo governo federal, mas isso não impediu que novos roubos de terras acontecessem por lá.
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E a situação pode piorar. A grilagem está novamente em pauta no Congresso Nacional. O que está na mesa é uma revisão, a segunda desde 2009, da lei que trata da regularização fundiária. Na prática, estamos diante de mais um projeto de lei que pretende legalizar o que é ilegal, adequando a legislação aos interesses do mercado de terras: após ter sido aprovado na Câmara dos Deputados, o PL da Grilagem pode ser votado a qualquer momento no Senado.
Tudo se complica ainda mais porque existe muita influência de grupos organizados da grilagem (conhecido como lobby) sobre políticos em Brasília, que usam o poder econômico e negociatas para que a legislação fundiária siga mudando e se adequando aos interesses de quem invade terras públicas — como é o caso da Gleba João Bento.
Fotos aéreas tiradas em setembro de 2021 pelo Greenpeace Brasil na Gleba João Bento mostram abertura de estrada, queimadas e presença de gado em áreas que deveriam estar conservadas (Crédito: Victor Moriyama/Greenpeace)
A relação bem resolvida entre os grileiros da Gleba João Bento e as mudanças na legislação
Se traçarmos uma linha histórica no interior da Gleba João Bento, é possível perceber o avanço da destruição caminhando lado a lado das discussões para alterar a lei fundiária. Primeiro, o desmatamento dispara a partir de 2010, respondendo às expectativas geradas pela aprovação da Lei 11.952, de 2009. Depois, um novo pico significativo de desmatamento acontece entre 2015 e 2017, período no qual o lobby da grilagem pressionava por mais mudanças, o que acabou acontecendo com a aprovação da Lei 11.465, de 2017.
Infelizmente, a prática de oficializar crimes contra a floresta não parou por aí. Não tardou para que mais uma vez o lobby voltasse à cena, e a eleição de Jair Bolsonaro caiu como uma luva para os interesses do mercado de terras. Em dezembro de 2019, o governo editou a Medida Provisória 910, buscando garantir passe livre para a regularização das áreas griladas até 2018.
Enquanto a grilagem ia sendo legalizada pelos poderes Executivo e Legislativo em Brasília, no chão da floresta a simples expectativa de novas alterações na lei se tornava o combustível para o avanço de tratores e motosserras sobre milhares de árvores da Gleba João Bento e de outros territórios na Amazônia.
Dos 295 mil hectares de floresta que havia dentro da gleba, 93 mil já foram derrubados e queimados, dando lugar a imensas áreas de pasto para a criação de bois. Cerca de 57% dessa destruição se deu entre 2019 e 2021, durante o governo Bolsonaro.
Grileiro tem nome e sobrenome
Um nome que se destaca na história da Gleba João Bento é o de Dorvalino Scapin, uma das 250 pessoas a lotear a área. Ele coleciona multas por destruir, sem autorização, grandes áreas na floresta. Scapin teve parte do território embargado e foi multado em quase R$ 13 milhões por desmatamento ilegal, por órgãos de fiscalização como Ipaam (Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas) e Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis).
Outro personagem desse enredo de destruição é um homem chamado Anderson Antônio. Em 2020, o Ibama o multou em R$ 14 milhões por queimar quase dois milhões de hectares de floresta amazônica, em uma área que é habitat da imponente castanheira-do-Brasil(Bertholletia excelsa), uma espécie ameaçada de extinção. No entanto, Anderson Antônio não aparece em nenhum cadastro ou registro fundiário público, o que sugere que ele esteja protegido pelo sigilo do Cadastro Ambiental Rural (CAR). O CAR é apenas uma inscrição de propriedade meramente formal que não valida nenhum direito sobre as terras, documento muitas vezes usado em negociações ilegais na Amazônia. Ou seja, Anderson poderia ser apenas um “laranja” no esquema de grilagem da gleba.
Além de Scapin e Antônio, outros dois grileiros ligados à gleba chamam a atenção pelo envolvimento de grandes empresas nessas atividades criminosas: um deles é José Carlos Bronca, pecuarista conectado aos frigoríficos Frigonosso e Frisacre, situados em Cacoal (RO) e Rio Branco (AC). Bronca teve pelo menos 962 hectares embargados em 2014, por conta de desmatamento não autorizado.
O outro é Reginaldo Eller do Carmo, que teve embargada uma área de 780 hectares na fazenda Pau D’Alho, dentro da gleba, em 2014 — o que não o impediu de continuar criando e comercializando bois com outras fazendas de Rondônia.
Grilagem e extração ilegal de madeira de mãos dadas
Ao contrário do que muita gente pensa, desmatar a Amazônia custa caro. Para financiar os tratores e motosserras que derrubam a floresta, existe uma outra atividade ilegal que vem primeiro: a extração e venda de madeira nobre. É ela que cobrirá os custos do desmatamento, abertura de estradas ilegais e instalação de pastagens no lugar da floresta.
Quando um imóvel rural é legalizado e seu proprietário pretende comercializar a madeira que existe dentro dela, ele precisa pedir ao governo uma licença para essa finalidade. Para isso, é necessário fazer um plano de manejo florestal, que terá informações sobre a área e de que forma ela será explorada.
É aí que surge mais uma ilegalidade na Gleba João Bento: na contramão da lei, o Ipaam, órgão que deveria zelar pela conservação da floresta, aprovou planos de manejo florestal dentro da gleba, ignorando que ela é uma terra pública federal e que, portanto, os “proprietários” (os grileiros) não tinham título de domínio ou autorização do Incra para utilizar a área. Resumindo, o próprio estado do Amazonas permitiu a destruição da floresta.
Durante as investigações realizadas pela Polícia Federal em uma operação denominada Arquimedes, ficou evidenciado que as autorizações dadas pelo Ipaam faziam parte de um gigantesco esquema de extração ilegal de madeira no Amazonas.
Até que os planos de manejo dentro da gleba fossem definitivamente suspensos por recomendação do Ministério Público Federal, da Polícia Federal e do Ministério Público de Contas do Estado do Amazonas, muita madeira foi retirada dali. Somente na Fazenda Bom Princípio, dentro da Gleba João Bento, entre a aprovação e o cancelamento do plano de manejo, foram explorados cerca de 13 mil metros cúbicos de madeira (cerca de 500 caminhões carregados), gerando lucros de mais de R$ 1 milhão para os invasores.
Toda a madeira extraída dessa fazenda foi comercializada com a empresa Industrial Madeireira Atalaia Ltda, que tem como sócio-administrador André Bandeira Macari. Não por acaso, Macari foi um dos fundadores do Condomínio Jequitibá, território grilado dentro da gleba e onde foram retirados criminosamente 45 mil metros cúbicos de madeira.
A Industrial Madeireira Atalaia Ltda comercializou com madeireiras de oito estados e exportou, via porto de Manaus, para Portugal, Bélgica e França um total de 28 containers lotados de madeira da floresta amazônica. Entre as empresa importadoras, estão a Tradelink e a Vogel, ambas com histórico de comprar madeira ilegal: entre 2011 e 2020, a Tradelink foi multada 26 vezes pelo Ibama, somando um total de R$ 2,3 milhões. Já a Vogel esteve envolvida na importação de madeira de ipê explorado ilegalmente, conforme mostramos no relatório “Árvores Imaginárias”.
Esses e outros detalhes da destruição na região você pode acessar no estudo que o Greenpeace fez sobre a Gleba João Bento.
Chegamos na terceira temporada da série que oficializa a grilagem no Brasil
Não satisfeito com os benefícios conquistados nas duas temporadas anteriores de facilitar a vida de grileiros (em 2009 e em 2017), o lobby da grilagem mais uma vez contra-ataca em Brasília. Com o retorno das atividades no Congresso Nacional, fica aberta a terceira temporada da série ”Mamata sem fim”, cujo objetivo é legalizar um crime que já é responsável por um terço do desmatamento da Amazônia.
O que deputados ruralistas, o governo Bolsonaro e grileiros querem agora, com o PL da Grilagem (PL 2.633/2020 e PL 510/21), é permitir:
- a regularização de áreas griladas entre 2008 e 2017, sem que elas sejam submetidas a processo licitatório e com um preço de compra abaixo do valor real de mercado;
- que grandes áreas griladas após 2017, como latifúndios, também possam ser privatizadas, desde que com processo de licitação pública.
Esses benefícios, além de passar a mensagem de que “liberou geral”, dão aos criminosos a esperança de que novas invasões poderão ser anistiadas no futuro.
Premiar a grilagem é perpetuar o avanço da economia da destruição, que já consumiu mais de 729 mil quilômetros quadrados da Amazônia, espalhando destruição, violência e morte. Por isso, é urgente que sejamos capazes de mudar nossa relação com a terra. Precisamos parar de ignorar os limites ecológicos do planeta e iniciar uma transição ecológica para uma economia capaz de conviver com a floresta.
As consequências do aumento da grilagem são devastadoras e têm relação direta com a emergência climática que o Brasil e o mundo já experimentam de maneira intensa. Os eventos extremos, como chuvas torrenciais, ondas de calor e secas, aumentam proporcionalmente à medida que aumentam o desmatamento e a destruição do meio ambiente. Além de prejudicar e colocar em risco os povos indígenas e as comunidades tradicionais, os impactos da grilagem já podem ser sentidos nas cidades.