Terra Indígena foi criada para interromper massacres, mas garimpeiros voltaram com mais força sob Bolsonaro
Murilo Pajolla – Brasil de Fato | Lábrea (AM)
Há aproximadamente três décadas, a liderança mais influente dos Yanomami, Davi Kopenawa, encontrava pela primeira vez um grupo de garimpeiros nas terras ancestralmente ocupadas por seu povo. Pintados de preto dos pés à cabeça, os guerreiros indígenas tentavam expulsá-los pacificamente. “Queremos convencê-los com nossas palavras, não com nossas flechas”, disse o jovem aos invasores. O trecho do livro “A queda do céu”, escrito por Davi e o antropólogo francês Bruce Albert, retrata o começo de uma guerra que não terminou, nem mesmo após a demarcação da Terra Indígena (TI) Yanomami ter sido homologada pelo então presidente Fernando Collor de Mello em 25 de maio de 1992.
Com a homologação, o maior território indígena do Brasil passava para as mãos da União. A Constituição garantia aos habitantes originários o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos. Mas faltou combinar com os garimpeiros. Eles haviam sido atraídos pela própria Funai, sob a gestão de Romero Jucá (1986-88), que abriu as terras dos Yanomami à exploração da madeira e do ouro. Sucessivas operações repressivas conseguiram expulsar os invasores, mas só temporariamente.
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Hoje, com Jair Bolsonaro (PL) no poder, eles voltam à TI Yanomami com força total. Desta vez, amparados pelo governo federal. “Como diz o Davi [Kopenawa], a gente está na mira da cobra grande. Nós conquistamos um espaço, o direito dos povos indígenas. E hoje a cobra grande está nascendo, cresceu e agora está tentando engolir o que nós conquistamos. Está colocando tudo na barriga dela”, diz Maurício Yekuana, vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami, principal organização do povo.
Políticos e empresários contra a demarcação
Evidências científicas indicam que os Yanomami vieram da Ásia, pelo estreito de Bering, há cerca de 15 mil anos. Eles decidiram morar onde os colonizadores estabeleceriam, milênios depois, a fronteira entre Brasil e Venezuela. Os primeiros contatos com não indígenas foram há mais de 200 anos, mas tudo mudou rapidamente a partir de 1940. Foi quando chegaram os missionários, os colonos, as doenças e as bebidas alcoólicas. Na década de 1980, mais massacres, dessa vez por causa do garimpo ilegal. Pressões internacionais e dos movimentos indígena e indigenista deixaram o governo sem alternativa, a não ser a proteção dos povos.
Quando foi apresentado a Collor, Davi Yanomami relata ter pedido a expulsão imediata dos mineradores ilegais. “São numerosos demais. Não tenho nem aviões nem helicópteros suficientes para tanto! Não tenho dinheiro!”, respondeu o presidente, segundo narra o líder Yanomami em “A Queda do Céu”. Davi não acreditou: “Eu trazia em mim a revolta de minha floresta destruída e de meus parentes mortos. Retruquei que com aquelas palavras tortas ele só queria nos enganar e deixar que nossa terra fosse invadida”.
O então presidente da Funai, Sydney Possuelo, relembra que no período foram demarcadas 166 novas terras indígenas. “Porém a primeira e a que mais teve custo de luta pessoal foi a Yanomami. Porque, além de pegar dois estados, Roraima e Amazonas, ela ficava na fronteira com outro país. Então já havia nisso uma certa dificuldade, pois seria a primeira terra a ser definida onde os militares diziam que era área de segurança nacional”, afirma.
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Entre os não indígenas, Possuelo foi um dos principais articuladores da demarcação. Ele recorda as muitas pressões contrárias, de elites políticas locais e nacionais, além das Forças Armadas, principalmente o Exército. Enquanto isso, os Yanomami tentavam repelir o que, até então, era o maior ataque de garimpeiros já sofrido pelo povo. Os invasores, representados por políticos e empresários poderosos, eram estimados em 40 mil.
“Ainda assim havia uma situação muito clara na política contrária à demarcação. Manifestações de garimpeiros dentro de Roraima e do próprio Romero Jucá. Enfim, quase todos se mostraram contra. Tinham aliados deles no Exército e outras forças da sociedade de Roraima não queriam a demarcação”, afirma o ex-presidente da Funai.
O então presidente Fernando Collor aperta a mão de Davi Yanomami durante cerimônia de homologação da TI Yanomami / Reprodução/Funai
Sob Bolsonaro, garimpo continua de onde parou
Para os Yanomami, o garimpo ainda é sinônimo de morte, fome, doenças e exploração sexual. Segundo a Associaçao Yanomami Hutukara, a praga já se espalhou por metade das comunidades. A entidade divulga frequentemente denúncias de crimes cada vez mais cruéis contra os indígenas.
Dominadas pela lógica mercantil do garimpo, as comunidades deixam de cultivar os próprios roçados, e passam a viver do pouco recurso obtido com a atividade ilegal. Com isso, ficam alienados da sua própria cultura e reféns dos garimpeiros. Em 2021, mais de 100 indígenas morreram direta ou indiretamente por causa da mineração ilegal, segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT). O relatório “Yanomami sob ataque“, da Hutukara, aponta a maior invasão garimpeira da história do território.
“Nos anos 80 e início de 90 teve aquela corrida do ouro na terra Yanomami. E nós estamos voltando para esse tempo. Por quê? Está tendo aumento na quantidade de garimpeiros. Está tendo interesse dos empresários, que vendem maquinário na cidade. Empresários que lucram muito com isso. Políticos partidários crescendo o olho e que financiam muito o garimpo”, constata Maurício Yakuana, da Hutukara.
O garimpo que hoje ameaça o território Yanomami, no entanto, não é o mesmo da época da demarcação. O potencial destrutivo da atividade aumentou. Mais moderno, o maquinário eleva a produtividade da devastação. Pontos de internet facilitam a comunicação entre os invasores. Segundo Yakuana, eles conseguem saber com antecedência sobre operações da Polícia Federal e do Ibama. Difícil de combater, por causa da lucratividade estratosférica, o garimpo está continuando de onde parou na década de 80.
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“Na época os garimpeiros enterraram muitos maquinários pesados, coberto pela lona. E eles estão recuperando isso, quer dizer, levam as peças pequenas e restauram [as máquinas desenterradas]. Muitos pilotos aposentados foram atraídos para ganhar muito dinheiro Eles têm muita experiência de pousar onde tem uma pista pequena e levar muita carga. Dizem que a oferta para o piloto é de R$ 150 mil por mês”, revela Maurício Yekuana.
Possuelo não hesita em dizer que a situação atual é “pior do que anteriormente”. “O que acontece hoje é a mesma coisa de antes, só que mais vultosa. Naquela época, a presidência da república, o governo e todos nós estávamos empenhados em acabar com o garimpo. Vamos delimitar, demarcar e tirar esses garimpeiros. Hoje é exatamente ao contrário. A invasão nasce de uma ação do governo federal e encontra respaldo na sociedade local, nas prefeituras e nos estados”, atesta o indigenista.
Culturas ancestrais resistem
Mesmo sob intenso ataque, as ricas e diversas práticas ancestrais florescem na TI Yanomami. Onde não há garimpo, os indígenas mantêm danças tradicionais, cerimônias da roça e de inauguração das casas. Permanece a prática de caçar, pescar e coletar frutos. Ritos que passam despercebidos em meio ao noticiário que anuncia o fim desses modos de vida.
Além dos Yanomami, o território é habitado pelos Yekuana, um povo especialista na construção de canoas. Eles fazem diálogos cerimoniais e ouvem a experiência dos mais velhos. É assim que Maurício, a jovem liderança Yekuana, quer ver seus parentes nos próximos 30 anos.
“Que a vida do nosso povo seja mais tranquila, os projetos bem executados, a saúde melhore. Que sejam feitas infraestruturas de postos de saúde. E que não tenha mais contaminações dos rios. Que a natureza também se recupere e que nós tenhamos um projeto de recuperar as áreas degradadas. Espero que a nossa terra continue nos próximos 30 anos”, projeta Maurício Yekuana.
Edição: Rodrigo Durão Coelho