Criminosos ambientais capturaram o estado e desmontam políticas cuidadosamente construídas ao longo de décadas
Murilo Pajolla – Brasil de Fato | Lábrea (AM) |
As mortes de Bruno Pereira e Dom Phillips silenciaram vozes que denunciavam a captura da Amazônia por criminosos ambientais. Mas o Vale do Javari (AM), onde eles desapareceram, é apenas uma parte do bioma onde o clima de anistia e o desmonte da fiscalização são quase generalizados.
Toda a Amazônia se consolidou como região estratégica para o tráfico internacional de drogas. A proximidade com os maiores produtores mundiais de cocaína – Colômbia e Peru – transformou a bacia amazônica em rota de escoamento de drogas que chegam à Europa e aos Estados Unidos, além de abastecer o mercado interno.
O garimpo, a caça e a pesca ilegais, junto com a grilagem e a extração irregular de madeira, tornaram-se opções seguras para facções que atuam no comércio e transporte de drogas pela tríplice fronteira. A Polícia Federal aponta que essas organizações encontraram no crime ambiental um método para lavar dinheiro.
Diante desse cenário, parece natural usar a expressão “terra sem lei” para caracterizar o estado atual de coisas na maior floresta tropical do mundo. Mas estudiosos insistem que é só a etapa mais recente de um violento processo de exploração econômica que começou na colonização.
Omissão ou projeto?
“O que está acontecendo na Amazônia não é omissão, é projeto”, garante o geógrafo e pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública Aiala Couto.
Ele aponta que o avanço de atividades predatórias sobre populações indígenas e ribeirinhas é legitimado por um modelo de desenvolvimento que enxerga áreas protegidas como fontes inexploradas de lucro. Uma concepção presente nos setores dominantes no Estado e na sociedade e que entende como atraso o uso sustentável dos recursos naturais.
“O desenho atual para a região amazônica é um desenho neoliberal na sua essência. É uma ideia de projeto civilizatório que se dá mediante à ideia de modernidade”, explica Couto, que leciona na Universidade do Estado do Pará (UEPA).
“Essa modernidade é trazer aquilo que dá condições para acumulação de capital. E tudo aquilo que resiste a essa acumulação é tido como atrasado”, prossegue.
Para Couto, o modelo de desenvolvimento que abriu as portas da Amazônia aos saqueadores de recursos naturais tem como contrapartida um estado mínimo que nega suas obrigações constitucionais de proteger os indígenas e suas terras.
“É um projeto, inclusive, necropolítico. É uma política de morte, não só dos povos da floresta, mas também da própria floresta. Porque quando se destrói a natureza, há também uma morte simbólica. Uma morte cultural e espiritual desses povos que dependem dessa floresta”, explica Couto.
Terra sem lei?
Em meio a disputas econômicas sem qualquer tipo de mediação, crescem relatos de banditismo e violência, principalmente contra indígenas e ribeirinhos. Só o garimpo ilegal, que ocorre principalmente na Amazônia, provocou 90% das mortes por conflitos no campo em 2021, segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT).
O órgão de direitos humanos também aponta que, no ano passado, 97% das áreas de disputas por terras no Brasil estavam no bioma, que registrou 80% dos assassinatos em casos de violência agrária.
Para a antropóloga Luísa Molina, as estatísticas alarmantes não podem ser explicadas apenas com a ideia de um Estado ausente. Ela prefere enfatizar a captura pelo crime ambiental dos órgãos que deveriam fiscalizar e promover direitos.
“Dizer que a Amazônia é uma terra sem lei é reforçar uma ideia que vai na contramão das denúncias feitas sistematicamente pelas pessoas que estão tentando protegê-la”, problematiza Luísa Molina.
“Ao repetir isso, construímos uma distância ainda maior entre as pessoas da região e o restante da população brasileira. E, com isso, a gente afasta do debate o principal problema que é: quais mecanismos permitem que o crime organizado avance sobre as áreas protegidas no Brasil?”, complementa a pesquisadora, que acompanha os impactos do garimpo no povo Munduruku, no Pará.
Um símbolo desse avanço está na Terra Indígena Yanomami. O garimpo ilegal tomou para si a pista de pouso de um posto de saúde na comunidade Homoxi. A unidade deixou de atender 615 indígenas e se converteu em uma base aérea de garimpeiros.
“Vemos que há a inversão do propósito de estruturas montadas para atendimento dessa populações. Há o esvaziamento e o desmonte das políticas indigenista e ambiental e a tomada de órgãos como a Funai em um processo brutal de aparelhamento”, destaca a antropóloga.
O órgão que deveria zelar pelos indígenas foi invadido por militares, missionários e latifundiários, segundo um dossiê produzido com a participação de servidores. Por isso Bruno Pereira se licenciou da Funai, antes de ser morto cumprindo um dever que seria do Estado.
“Toda a política tão cuidadosamente tecida para proteção dos povos indígenas é subvertida justamente para fazer o contrário do que deveria estar fazendo”, lamenta Luísa.
Edição: Rodrigo Durão Coelho