Massacre policial ocorreu nesta sexta-feira, em Amambai, na fronteira com o Paraguai, e deixou oito feridos; pecuarista tem várias fazendas no município, fundou frigorífico no país vizinho e já foi autuado por desmatamento e extração ilegal de madeira
Por Alceu Luís Castilho e Bruno Stankevicius Bassi
Um indígena assassinado e oito feridos. Esse foi o saldo de mais uma operação policial contra os Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul, realizada na manhã de ontem (24), no município de Amambai, na fronteira com o Paraguai. A vítima, identificada como Vito Fernandes, tinha 42 anos. Dois adolescentes da etnia encontram-se em estado grave, ambos com perfurações por balas.
A ação do BPChoque (Batalhão de Policiamento de Choque) da Polícia Militar do Mato Grosso do Sul teve início após os Kaiowá ocuparem uma área da Fazenda Borda da Mata, vizinha da Terra Indígena Amambai. O imóvel de 269 hectares pertence à empresa VT Brasil Administração e Participação, controlada por Waldir Cândido Torelli e seus três filhos: Waldir Junior, Rodrigo e um adolescente, com menos de 18 anos.
Torelli já foi perfilado por este observatório na série De Olho no Paraguai. Ele possui açougues em São Paulo e várias fazendas no Mato Grosso do Sul. Teve frigorífico no Mato Grosso e no Paraguai, em sociedade com Jair Antônio de Lima, radicado no país vizinho. O do Mato Grosso foi adquirido pela gigante Marfrig.
Segundo o jornal Campo Grande News, a Grande Assembleia Aty Guasu Guarani e Kaiowá está chamando a ação policial de Massacre de Guapoy. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) soltou nota igualmente classificando o episódio como massacre.
PROPRIETÁRIO JÁ FOI ACUSADO DE DESMATAMENTO E EXTRAÇÃO ILEGAL DE MADEIRA
Em 2018, a VT Brasil moveu ação de interdito proibitório contra a Fundação Nacional do Índio (Funai), a União e a “comunidade Guarani-Kaiowá”, alegando que os indígenas estariam “molestando sua posse no imóvel rural Fazenda Borda da Mata”. A União alegou que não havia provas. O juiz da 1ª Vara de Ponta Porã decidiu, em julho daquele ano, que o pedido era improcedente.
Um dos imóveis da família, a Fazenda Isla-Caiguê, foi alvo de um inquérito civil impetrado pelo Ministério Público do Mato Grosso do Sul (MPMS) em 2017 para apurar a notícia de desmatamento e exploração ilegal de madeira denunciadas durante a Operação Cachorro-Vinagre. O processo foi arquivado no ano seguinte após assinatura de Termo de Ajustamento de Conduta. A fazenda fica em área de nascentes.
Quatro anos antes, em 2013, Torelli figurava entre os réus denunciados na Operação Jurupari, no Mato Grosso, que investigava formação de quadrilha, desmatamento ilegal e furto de madeiras em operações de manejo florestal no norte do estado. A estimativa de prejuízos causados era de R$ 900 milhões.
Hoje, Torelli concentra suas propriedades em Amambai. Ao todo, ele possui 3.792 hectares, divididos em dez propriedades. Somados, os imóveis da família ultrapassam em 55% a área total da TI Amambai, com 2.441 hectares delimitados.
A Fazenda Borda da Mata, com 262 hectares, foi adquirida pelo grupo em 2009, por R$ 1,8 milhão. A Agropecuária Fagotti, de Londrina (PR), pede averbação do imóvel por causa de uma dívida de R$ 4,1 milhões da VT Brasil.
ANTIGO SÓCIO INVADIU TERRA INDÍGENA ARROYO KORÁ
Waldir Cândido Torelli é um dos fundadores do Grupo Torlim, antigo controlador do Frigorífico Vale do Amambai (Fribai), figura carimbada na lista dos 500 maiores devedores da União, com uma dívida ativa acumulada em R$ 493,2 milhões.
O fazendeiro era sócio de Jair Antônio de Lima, com quem fundou o Frigorífico Concepción, um dos três maiores exportadores de carne do Paraguai. Os dois brasileiros romperam em 2009, quando Torelli se afastou do negócio para fundar a VW Brasil Agropecuária, declarada inapta pela Receita Federal.
Amigo do ex-presidente Horacio Cartes, Lima protagonizou diversos escândalos no país vizinho: do envolvimento do Frigorífico Concepción em esquema de contrabando de carne pela fronteira, em 2018, até o mais recente, em março deste ano, quando a empresa foi citada pelo empresário Ramón González Daher, condenado a 15 anos de prisão por lavagem de dinheiro, como intermediária para o envio de dinheiro do Paraguai aos Estados Unidos.
No Mato Grosso do Sul, Jair de Lima é dono da Fazenda Nova Alvorada, cuja área incide dentro da Terra Indígena Arroyo Korá, em Paranhos. Seu nome consta de relatório feito pela Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB-SP) em 2012, durante a Expedição Marco Veron, constatando que 6.475 dos 7.175 hectares demarcados pela Funai estavam em mãos de fazendeiros.
Apesar de Lima aparecer no Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR/Incra) como dono da Nova Alvorada, a fazenda já foi administrada pela VT Brasil, empresa de Torelli. Em 2015, a Comissão Permanente de Análise das Benfeitorias da Funai decidiu considerar como “derivadas da ocupação de boa fé”, para efeito de indenização, as benfeitorias instaladas por Torelli e por outros ocupantes não indígenas.
Os ex-sócios foram destaque em uma das 36 reportagens da série De Olho no Paraguai, que mostrou o avanço de latifundiários brasileiros sobre o país vizinho: “Amigo de Horacio Cartes, dono de frigorífico teve fazenda na TI Arroyo Korá, no MS“.
AÇÃO SEGUE MODUS OPERANDI DA VIOLÊNCIA ESTATAL NO MS
Em coletiva de imprensa convocada na tarde de ontem, o secretário de Justiça e Segurança Pública de Mato Grosso do Sul, Antônio Carlos Videira, tomou partido dos policiais, afirmando que os indígenas “criaram um clima de terror”.
Ex-delegado da Polícia Civil em Dourados, Videira é lembrado pela participação em outra operação polêmica. Em agosto de 2018, ele coordenou, de um helicóptero, a expulsão da retomada Guapo’y, em Caarapó, A operação resultou em cinco indígenas feridos por balas de borracha, uma mulher atropelada por viatura da PM. Um ancião de 69 anos foi preso. Na época, a diligência foi criticada por ter sido realizada sem o acompanhamento da Polícia Federal e sem mandado judicial, assim como ocorrido na expulsão de ontem em Amambai.
Durante a coletiva, Videira reproduziu um discurso recorrente de ruralistas da região, o de que os indígenas não seriam brasileiros:
— Temos até este momento a notícia de seis pessoas [feridas], não dá para dizer que são todos indígenas, podem ser paraguaios ou indígenas do Paraguai que foram atingidos e, desses, dois foram removidos para Ponta Porã.
JOVEM DE 18 ANOS FOI MORTO EM CORONEL SAPUCAIA, PERTO DE AMAMBAI
Alex Recarte Vasques Lopes foi assassinado com pelo menos oito tiros no dia 21 de maio, em Coronel Sapucaia, município vizinho de Amamabi, também na fronteira com o Paraguai. O corpo do adolescente Guarani Kaiowá foi encontrado do lado paraguaio, em Capitán Bado. A Folha contou no dia 14 que o caso completava três semanas sem a prisão de nenhum suspeito.
Jamil Chade informou no UOL, na segunda-feira (20), que a Secretaria do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) recebeu naquele dia uma denúncia conjunta de várias organizações indígenas, em meio à comoção pela morte do indigenista Bruno Araújo Pereira e do jornalista dom Phillips. O caso de Alex foi lido por Lunici de Oliveira, da etnia Guarani Kaiowá.
Foto principal (Comunicação/Apib): assassinatos de Guarani Kaiowá compõem acusações internacionais contra o Brasil
| Alceu Luís Castilho é diretor de redação do De Olho nos Ruralistas. |
|| Bruno Stankevicius Bassi é coordenador de projetos do observatório. ||
||| Colaboraram Bernardo Fialho e Eduardo Carlini, pesquisadores. |||