O monitor Sinal de Fumaça mostra o papel de parlamentares nesse cenário e levanta desafios para depois das eleições
Gabriela Moncau – Brasil de Fato | São Paulo (SP)
Faltando pouco para as eleições de outubro, o monitor Sinal de Fumaça lança o Guia Amazônia Legal e o Futuro do Brasil – Um raio X dos 9 estados da região entre 2018-2022. A publicação de 172 páginas detalha, por meio de dados, gráficos e entrevistas, não só como a política bolsonarista de uso da terra está na raiz da explosão da violência e devastação na região. Mas também a forma como ela se materializa nesses quase quatro anos de governo: por meio de bases de apoio civis, parlamentares e de governos estaduais, conchavos políticos, propostas legislativas e notícias mentirosas.
São nove os estados brasileiros que compõem a chamada Amazônia Legal, onde vivem cerca de 30 milhões de pessoas: Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins e parte do Maranhão. Estão aí 10 das 30 cidades mais violentas do país, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
Entre 2020 e 2021, o desmatamento nessa área – que corresponde a 58,9% do território brasileiro – cresceu 21,97%. E no primeiro semestre de 2022, houve na região a maior devastação vista nos últimos 15 anos: em apenas 151 dias, foi desmatada uma área equivalente a dois mil campos de futebol.
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Dos representantes destes estados amazônicos no Congresso Nacional, 74% dos senadores e 56% dos deputados federais integram a Bancada Ruralista. O Sinal de Fumaça listou, estado por estado, como os parlamentares votaram em quatro projetos chave do chamado “Pacote da destruição de Bolsonaro”.
Seus apelidos explicitam o que pretendem. São o “PL da Grilagem” (2633/2020), que pode regulamentar o roubo de 19,6 milhões de hectares de terras públicas; o “PL do licenciamento ambiental” (3729/2004), que flexibiliza a autorização de obras que impactam comunidades tradicionais; o “PL do marco temporal” (490/2007), que afeta a demarcação de terras indígenas; e o “PL da mineração” (191/2020), que prevê a exploração de minério, hidrelétricas e atividades similares dentro de territórios indígenas.
Acompanhando Bolsonaro (PL), 66% dos deputados da Amazônia Legal votaram a favor do “pacote da destruição”. Todos os projetos estão tramitando e seguirão na mesa após as eleições.
A maioria dos representantes dos nove estados da Amazônia Legal no Legislativo estão a serviço do interesse de ruralistas / Sinal de Fumaça
Jornalista e ativista de direitos humanos, Rebeca Lerer é criadora do Sinal de Fumaça, uma plataforma bilíngue lançada em 2020 que sistematiza semanalmente os principais acontecimentos relacionados à crise socioambiental do país.
No lançamento do Guia, realizado na última terça-feira (30), Lerer se opôs ao discurso de que o presidente trabalha pouco. “O que eles [governos e parlamentares] conseguiram fazer, embora os PLs não tenham virado lei ainda, apenas com a tramitação e leis estaduais, foi alterar a gestão da terra no Brasil. Principalmente na Amazônia Legal, que é uma das principais expansões da fronteira agropecuária e mineral do mundo”, aponta Lerer.
“Essa explosão de desmatamento e grilagem garante um novo ciclo de expansão de mercado de commodities para os próximos anos. Foi uma das principais políticas de ‘desenvolvimento’ propostas e executadas pelo governo Bolsonaro. Isso tem que ser colocado de forma mais consistente do que é hoje”, opina Rebeca. “Porque alguns falam como se ele não tivesse conseguido realizar nada. Ele foi bastante eficiente na minha opinião”, completa.
“Com a caneta, querem matar nosso povo”
O evento de lançamento do guia do Sinal de Fumaça trouxe um representante de cada estado da Amazônia Legal. Tarisson Nawa falou da situação do Acre e, principalmente, a do seu povo, que vive na Terra Indígena (TI) Nawa, no Parque Nacional Serra do Divisor, quase na fronteira com o Peru.
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“Tivemos o período das invasões, da captura dos nossos parentes e a destruição da forma como nos organizávamos social e politicamente. Isso fez com que nos ‘integrássemos’ – numa palavra horrível e ridícula – com o resto da sociedade”, Tarisson faz um retrospecto. “Depois, nossas terras foram usurpadas pelo processo da borracha”.
“Nos últimos quatro anos, a gente tem visto mecanismos que nos atacam pela caneta. Numa canetada, produzem leis ou projetos que impactam diretamente os territórios indígenas. Outra forma de matar nosso povo”, avalia o indígena Nawa, que é também jornalista e mestrando em antropologia.
Dados do Imazon evidenciam o crescente desmatamento na Amazônia ao longo da gestão Bolsonaro, atingido seu ápice em 2022 / Sinal de Fumaça
A principal ameaça agora é a da construção da Estrada do Pacífico, que pretende ligar as cidades de Cruzeiro do Sul (AC) e Pucallpa (Peru), atravessando pelo meio do Parque Nacional da Serra do Divisor, e afetando diretamente as comunidades indígenas Nawa e Nukini.
“O Estado diz que protege. Nós vemos de outra forma. Nós cuidamos da natureza e, assim, ela cuida da gente. É uma via de mão dupla. E nossos povos têm se unido para fortalecer a luta pelo território”, afirma Tarisson.
“Vivemos uma guerra: não há outro nome”
Ao citar o caso do Quilombo do Ambé, Gil Reis, do Instituto Mapinguari, ilustra a literal perda de espaço das comunidades tradicionais no Amapá. O maior quilombo demarcado do estado está sendo invadido pelo cultivo de soja transgênica. “A cada mês, a plantação cresce um metro a mais para dentro do quilombo”, conta.
“Nesses quatro anos o que percebemos aqui no Amapá é, principalmente, a invasão da soja e o aparelhamento das mídias. Hoje é muito difícil um apresentador de de TV ou rádio que não esteja alinhado com o bolsonarismo”, descreve Reis.
Advogado popular em São Luís (MA), Diogo Cabral foi categórico: “o Maranhão vive uma guerra. Não há outro nome para informar o que se passa por aqui. Basta substituir tanques por tratores, aviões militares por aviões de pulverização de veneno, soldados por jagunços, generais por donos do agronegócio”.
Números do Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostram a violência na Amazônia entre 2019 e 2022 / Sinal de Fumaça
“Só entre 2021 e 2022 foram assassinadas 10 pessoas no Maranhão, sendo oito quilombolas. O Maranhão teve, nos últimos 15 anos, tão somente 12 territórios quilombolas titulados pelo Incra e pelo Instituto de Terras Estadual”, descreve Cabral.
“Vivemos uma migração do campo para a cidade por conta dos grandes projetos. E dos 42 deputados estaduais, temos dois que não são da Bancada Ruralista”, contextualiza.
O futuro próximo
Eliane Xunakalo, do povo Bakairi, descreve que, apesar de viverem em 62 dos 141 municípios do Mato Grosso, os povos indígenas do estado são vistos pelo resto da sociedade como “seres estranhos”. “E a gente está aqui desde sempre, né?”
“Quando a gente fala de defender o meio ambiente, sofremos represália por sermos vistos como um atraso ao desenvolvimento. Mas que desenvolvimento é esse? No qual a gente não vai ter futuro?”, questiona Xunakalo.
E as questões sobre o futuro, inclusive esse bem próximo que se avizinha, são também pontos que a publicação do Sinal de Fumaça se propõe a levantar, para além de documentar a catástrofe dos últimos quatro anos.
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“Precisamos pensar o que está em jogo. Mesmo que haja uma mudança de governo, o Congresso vai herdar o pacote da destruição ainda em tramitação, e outras leis e obras que estão em andamento”, salienta Rebeca Lerer. “Isso precisa estar no radar da sociedade civil.”
Ciro Campos, do Instituto Socioambiental (ISA), deu um exemplo. “A maior hidrelétrica dos planos governamentais está projetada para Roraima. Nosso maior rio está sob grande ameaça.” Ele se refere à Usina Hidrelétrica Bem Querer, planejada para barrar o rio Branco.
De acordo com o guia do Sinal de Fumaça, “apesar das ameaças e violências, as estratégias de mobilização pública, de articulação com a oposição parlamentar e de ações no judiciário reduziram os danos e atrasaram os planos legislativos da aliança entre a maioria ruralista no Congresso e o governo Bolsonaro”. Segundo a publicação, “os movimentos indígenas, sociais e de luta pela terra têm sido a linha de frente na resistência contra o fascismo na Amazônia”.
Edição: Nicolau Soares