UOL, por Rafael Burgos – No último 7 de Setembro, o presidente Jair Bolsonaro promoveu um de seus comícios, transformando o feriado nacional de Independência em mais um palco para seus crimes, ao utilizar a máquina pública em benefício pessoal. Na ocasião, Bolsonaro aproveitou a oportunidade para desfilar falas sexistas contra a esposa do ex-presidente Lula e repetir o grito de “imbrochável
Essa não foi a primeira vez em que o presidente utiliza o termo, o qual tem sido trabalhado desde sua campanha em 2018. O uso de imagens de cunho sexual e a menção a órgãos genitais são uma frequência quando se trata de Bolsonaro, que chegou a fazer piada de teor sexual com uma criança de 10 anos em live transmitida no dia 10 de setembro de 2020 — o que é crime segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Como explicar que um presidente com discurso fortemente ancorado na ‘defesa da família’ tenha sido, ele mesmo, o chefe de Estado brasileiro que, em toda a história, mais se apropriou de discursos sexualizados e de forte teor libidinal?
Um estudo clássico do filósofo Theodor Adorno talvez tenha a resposta. Publicado em 1951, com o título de ‘A teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista’, o artigo tornou-se uma referência para aqueles que buscam compreender o regime de afetos predominante nos movimentos fascistas.
O que distingue a propaganda do tipo fascista, segundo Adorno, é que ela “deve mobilizar processos irracionais inconscientes e regressivos”. A partir da leitura de Freud, o filósofo alemão conclui que, nas massas fascistas, predomina um tipo de irracionalidade “não baseada em percepções e raciocínios, mas em um vínculo erótico”.
Ao fazer parte de uma coletividade do tipo fascista — tornando-se uma massa —, os indivíduos abrem mão de suas subjetividades, permitindo que fantasias inconscientes tomem forma. Segundo Freud, os vínculos de tipo grupais são bastante compatíveis com o amor de natureza homossexual, o que parece explicar o alto grau de excitação provocado pelo coro bolsonarista “imbrochável”.
Sob o fascismo, ao estabelecer uma identificação narcísica com o líder, o sujeito transfere a ele todos os seus investimentos libidinais, de modo que “ao fazer do líder seu ideal, o sujeito ama a si mesmo, por assim dizer, mas se livra das manchas de frustração e descontentamento que estragam a imagem que tem de seu próprio eu empírico”.
Isto quer dizer que, ao entoar a sua pretensa virilidade diante de apoiadores, o presidente Bolsonaro encenava, ali mesmo, o processo narcísico próprio ao fascismo: vocês são viris porque eu sou.
Como bem destacado por Adorno, para dar corpo a essa fantasia narcísica dos seguidores, um dos artifícios utilizados por esse tipo de liderança é a personificação do ‘pequeno-grande homem’ — pequeno em sua simplicidade tal qual o cidadão comum, grande em seus dotes sobrehumanos, como sustenta Bolsonaro, um homem de 67 anos, acerca de sua potência sexual.
A pandemia e as fantasias de Bolsonaro
A fantasia de super-homem bolsonarista já havia sido vestida, devemos lembrar, no famoso discurso da ‘gripezinha‘, em que o presidente alegou estar imune à covid em razão do suposto histórico de atleta. Como dito nesta coluna pelo pesquisador Jason Stanley, autor de um best-seller sobre o fascismo, naquele pronunciamento Bolsonaro alegou que o Brasil sobreviveria à pandemia, não em razão de medidas sanitárias, mas de atributos masculinos como a juventude e a virilidade.
Não poderíamos esquecer de mencionar, ainda, como em outro discurso famoso, o do ‘jacaré‘, que marcou um de seus surtos contra vacinas, Bolsonaro se disse preocupado com dois possíveis efeitos colaterais dos imunizantes: “nascer barba em alguma mulher ou algum homem começar a falar fino”. Isso deixa bem claro como sua rejeição às vacinas guarda forte relação com paranoias de cunho sexual.
Ordem e repressão?
É lugar comum associar movimentos de extrema direita ou autodenominados ‘conservadores’ a figuras da repressão ou da contenção sexual, como sugerem os seus discursos, de forte carga moral e desejo de controle dos corpos alheios. Mas, como mostram estudiosos do fascismo, essa paranoia repressiva esconde um desejo inconsciente de liberação sexual, manifestado, como dissemos, em incontáveis passagens do presidente brasileiro ao longo do seu mandato.
Em seu estudo sobre os Freikorps, grupos paramilitares que serviram de escada à ascensão do nazismo alemão, o sociólogo Klaus Theweleit investiga a violência nazista a partir das fantasias dos integrantes da milícia, todos eles unidos sob uma forte fraternidade masculina e ódio à figura do feminino — forma de misoginia que, em última instância, privilegia o laço homoafetivo entre homens.
Segundo o historiador da Alemanha Geoffrey Giles, que investigou casos de homoafetividade na polícia nazista, “não era fácil distinguir o laço entre homens que os nazistas incentivaram vigorosamente em nome da camaradagem, e deve ter havido milhões de jovens alemães que não tinham uma ideia bem definida sobre essa diferença”.
Na mesma linha, em ensaio sobre a estética nazifascista, a escritora Susan Sontag observa como essa simbologia tornou-se, com o tempo, objeto de múltiplas representações eróticas, como no caso de suas botas, cruzes de ferro, suásticas e motocicletas — as mesmas utilizadas por Bolsonaro em passeios junto a apoiadores.
“Por que a Alemanha nazista, que foi uma sociedade repressiva do sexo, se tornou erótica? Como pode um regime que perseguiu homossexuais ter se convertido num estímulo sexual gay?”, pergunta Sontag.
A resposta, segundo a própria autora, e na linha do que pontuou Adorno, está na ‘superfície erótica’ dos movimentos de direita supostamente repressivos. À diferença da ‘castidade’ da arte comunista, segundo Sontag, a estética fascista é lasciva e adepta de um erotismo ideal. “O ideal fascista é transformar a energia sexual em uma força ‘espiritual’ em benefício da comunidade”, diz a escritora.
O bolsonarismo como estética política
Como apontou o cientista político Jairo Nicolau em seu detalhado mapa das eleições de 2018, presente no livro “O Brasil dobrou à direita”, a eleição de Jair Bolsonaro representou o primeiro pleito presidencial brasileiro em que o fator gênero tornou-se um marcador de votos. Isso quer dizer que, em eleições anteriores, não havia um padrão relevante nos votos de homens e mulheres da forma que acontece, historicamente, quando olhamos marcadores de renda e escolaridade, por exemplo.
“A assimetria nos votos de homens e mulheres é uma singularidade da disputa de 2018. Desde as eleições de 1989 todos os candidatos competitivos à presidência obtiveram níveis de apoio semelhantes entre os dois gêneros. Isso aconteceu mesmo quando havia mulheres concorrendo. Marina Silva (2010, 2014 e 2018) e Dilma Rousseff (2010 e 2014) tiveram um percentual de apoio similar entre homens e mulheres”, observa Nicolau.
Desde então, o bolsonarismo tem conseguido transformar o fator gênero numa importante ferramenta de transferência de votos, o que se refletiu em uma popularidade consistentemente superior entre homens do que com mulheres ao longo dos quatro anos de mandato.
Das motociatas, passando pelo 7 de Setembro com as ruas em verde-amarelo até a tentação por armas de fogo e os discursos sexualizados, tudo isso aponta no mesmo sentido: para além de um movimento ideológico, o bolsonarismo hoje comporta-se muito mais como uma estética política, de modo que bradar sobre seu desempenho sexual, assim como comparar a aparência da primeira-dama com a esposa do seu adversário Lula — os dois principais momentos do ato da última quarta — tornaram-se mais importantes para mobilizar as massas do que promessas de natureza social e econômica.
Sim, a guerra cultural bolsonarista está viva como nunca, mas se engana quem pensa que ela se baseia na defesa de valores. A disputa de outubro será, fundamentalmente, travada no campo estético, arena na qual o presidente se sente à vontade para performar modos de ser e de sentir, buscando inspirar aqueles que clamam por um Brasil mais ‘vigoroso e potente’ — em outras palavras, um Brasil masculino.
* Rafael Burgos é jornalista e mestrando em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. É editor da coluna Entendendo Bolsonaro.