Infoamazonia, por Por Cristiano Navarro e Fábio Bispo – Sem participação dos povos indígenas, governo estabelece novo estatuto para Funai. Entidades indigenistas denunciam que mudanças na estrutura impactam funcionamento do órgão e afetarão demarcação de terras indígenas.
A publicação de um decreto no Diário Oficial da União esta segunda-feira (dia 10) colocou organizações e entidades indigenistas em alerta. Os defensores dos direitos indígenas denunciam que o novo estatuto e mudanças no quadro de servidores da Fundação Nacional do Índio (Funai) devem inviabilizar a demarcação de terras indígenas e reduzir a autonomia do órgão na construção e aplicação das políticas indigenistas oficiais.
“O governo Bolsonaro prometeu dar uma foiçada na Funai, lembra? Primeiro ele cortou os membros, e agora, com esse decreto, ele corta a cabeça do órgão. Praticamente acaba com a instituição”, adverte Antonio Eduardo Cerqueira de Oliveira, secretário-executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
Por decreto, (Decreto 11.226), Jair Bolsonaro (PL) excluiu os Comitês Regionais, extinguindo também suas instâncias como as Frentes de Proteção Etnoambiental e Coordenações Técnicas Locais, previstas no Estatuto de 2017e que já vinham sendo ignoradas pelo governo federal desde que assumiu, em 2019.
Os Comitês Regionais são instâncias regionais de planejamento, articulação, gestão compartilhada e controle social. É, também, um espaço onde, indígenas, servidores da Funai e de outros órgãos do governo federal planejam, em conjunto, ações e avaliam resultados. Segundo manifestação preliminar das entidades, a retirada de atribuições das instâncias de participação social do novo Estatuto Funai inviabiliza a continuidade de estudos, como as consultas públicas, as frentes de proteção a indígenas em isolamento e pode afetar, inclusive, a demarcação de novas terras indígenas.
As entidades ainda avaliam o remanejamento de cargos de comissão e funções de confiança em praticamente todas as diretorias do órgão. Mais de 1 mil cargos serão remanejados ou terão novas atribuições, essas vagas são de livre nomeação, o que pode agravar ainda mais o desmonte do órgão, segundo as avaliações. De acordo com o texto do decreto, as mudanças entrarão em vigor em 27 de outubro próximo.“O que se percebe é uma pressão para reduzir o poder do órgão de deliberar sobre as questões indigenistas, assim ele perde as suas responsabilidade e sua finalidade”, critica o secretário do Cimi.
O Estado tem o dever de consultar previamente os povos indígenas todas as vezes que atos de caráter administrativo e legislativos forem capazes de lhes afetar
Assessoria Jurídica da Apib
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) afirma que a extinção das instâncias participativas da Funai “reforça a sistêmica omissão e atuação contrária aos direitos indígenas” e viola tratados internacionais: “O decreto afronta o princípio da consulta e consentimento prévio, livre e informado dos povos indígenas, consagrado no art. 6º, da Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho)”, analisa a assessoria jurídica da Apib por meio de documento. “O Estado tem o dever de consultar previamente os povos indígenas todas as vezes que atos de caráter administrativo e legislativos forem capazes de lhes afetar”, aponta.
A mudança no estatuto também retira das comunidades o poder de administrar bens do patrimônio repassados pelo poder público aos indígenas.
A deputada federal Joenia Wapichana (Rede-RR) ingressou esta segunda (10) com Projeto de Decreto Legislativo (PDL) para suspender os efeitos do decreto presidencial.
No pedido, a deputada indígena argumenta que o novo Estatuto “desmonta o monitoramento territorial” diminuindo a estrutura, os serviços de vigilância e a capacitação para os povos indígenas. A deputada aponta também redução no Museu do Índio.
“É inaceitável que o governo Bolsonaro faça a reestruturação da Funai sem dialogar com os povos indígenas, garantia que está prevista na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho e demais dispositivos legais”, aponta a deputada na justificativa do PDL.
Pegos de surpresa, os servidores da Funai também tentam entender a dimensão das mudanças com destaque para o impacto sobre as coordenadorias regionais: “Nós estamos desconfiados, por conta de tudo que a atual gestão da Funai fez contra os direitos indígenas e contra os próprios servidores da Funai”, afirma Fernando Vianna, presidente da Indigenistas Associados (INA), associação dos servidores da Funai que está articulada com outros organismos para levantarem de forma mais objetiva os impactos das mudanças.
Sem citar as manifestações públicas das organizações de proteção indígena, em nota publicada 11 de outubro no site da Funai , a gestão da Fundação disse que as coordenações regionais e técnicas “se mantêm fortalecidas com o novo Estatuto, sem prejuízos ou extinções” e que as mudanças vão “garantir a eficiência na utilização dos recursos disponíveis sem aumento de despesa no âmbito da administração direta. Questionada pela reportagem, a Funai não se manifestou sobre os apontamentos das entidades.
Quatro anos de omissão
A política anti-indigenista do presidente Jair Bolsonaro não é novidade. Seu governo vai completar quatro anos sem nenhuma demarcação de terras indígenas e com proteção estatal dos territórios mais frágil.
Em 2017, quando se lançou candidato, Bolsonaro prometeu em campanha que em seu governo não teria“um centímetro demarcado para reserva indígena ou quilombola” e que daria uma “foiçada no pescoço da Funai”.
A ingerência governamental nas decisões da Funai colocou povos em isolamento voluntário em risco. E nos três primeiros anos do governo Bolsonaro, o desmatamento em terras indígenas aumentou 138% segundo estudodo Instituto Socioambiental (ISA).
“O órgão indigenista vem reiteradamente se omitindo de suas atribuições no que tange à demarcação e proteção das terras indígenas, bem como à fiscalização, proteção e promoção dos direitos dos povos originários”, afirma a Apib.Entre as omissões com relação aos povos isolados, a gestão Bolsonaro ameaçou não renovar a restrição de uso em áreas com registros de indígenas nas Terras Indígenas Piripkura (MT) e Ituna-Itatá (PA), que se tornaram alvos cada vez mais constantes de invasores, como madeireiros e garimpeiros. Bolsonaro também não renovou a restrição de uso dos isolados na TI Jacareúba/Katawixi, que estão desprotegidos desde dezembro.
Direitos atropelados sem consulta
O decreto sem consulta que traz mudanças no estatuto da Funai se soma a outras decisões unilaterais tomadas durante a atual gestão em relação aos povos indígenas.
Recentemente, o governo federal deu por concluída a consulta prévia, livre e informada nas terras indígenas Lago Capanã, Ipixuna, Nove de Janeiro, Ariramba, Apurinã do Igarapé Tauamirim e Apurinã do Igarapé São João, no raio de 40 km da rodovia BR-319. A decisão passou por cima de manifestações contrárias dos próprios indígena e do Ministério Público Federal (MPF) que apontam violação dos direitos indígenas para iniciar a obra do governo federal.
Em maio deste ano, alegando uma crise internacional de fertilizantes por causa da invasão da Rússia à Ucrânia, Bolsonaro pediu para o Congresso acelerar o PL 191/2022 que pretende liberar a mineração em terras indígenas. Na ocasião, defendeu projeto para exploração de potássio na Amazônia.
Em Autazes (AM), na bacia do rio Madeira, onde a mineradora canadense Potássio do Brasil pretende explorar o mineral para produção de fertilizantes, há denúncias de aliciamento dos povos indígenas por parte da empresa para atropelar o processo de consulta prévia.O dossiê Fundação Anti-indígena: um retrato da Funai sob o governo Bolsonaro, lançado pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e a associação Indigenistas Associados (INA), aponta que o governo Bolsonaro transformou a Funai em “órgão de políticas anti-indigenistas” e militarizado.