Pessoas marchando em frente a quartéis, ajoelhadas e pedindo intervenção militar (ou divina), em frenesi coletivo, nesta última quarta-feira (2/11), produziram cenas para não esquecermos e que podem se repetir nos próximos anos. Sintomático também que tenham ocorrido no Dia de Finados, em que celebramos a memória de nossos mortos, incluindo as 700 mil vítimas da má gestão da pandemia no Brasil – mais uma vez esquecidas pelo bolsonarismo.
Na FSP, por Pedro Arantes, Soraya Smaili, Maria Angélica Minhoto
Na contagem das 72 horas de produção de caos para iniciar uma suposta intervenção militar, na interpretação delirante do famoso artigo 142 da Constituição Federal, depois de 48 horas parando estradas, a turba ascendeu aos quartéis, aguardando a saída de tanques e tropas. Em pleno Finados, não perceberam que estavam performando o próprio luto paranoico da derrota, como zumbis verde-amarelos no ataque à democracia. Imagem coerente com a necropolítica que o governo promoveu.
Em observação das redes sociais feita pelo SoU_Ciência nos últimos dias, é possível perceber a migração das mensagens de convocação e adesão aos atos. Elas não trafegam mais por Instagram, Facebook e Twitter, mas pelo espaço mais subterrâneo, anonimizado e não controlado dos grupos do Telegram.
As redes sociais tradicionais tornaram-se apenas pontas do iceberg comunicacional dos extremistas e seu monitoramento hoje já não é mais capaz de captar o que corre nas profundezas dos grupos não públicos e sem controle social.
Por exemplo, desde o domingo da eleição os perfis de Twitter de Jair Bolsonaro e Carlos Bolsonaro não publicam nada (até o momento em que escrevemos este artigo). Flávio postou um lacônico “pai estou com você para o que der e vier”, na segunda-feira. Michelle, no dia de Finados, postou vídeo de manifestações defronte a quartel em Salvador, e Eduardo um vídeo das manifestações no Rio – legitimando a ação, mas não se vinculando diretamente.
Nas redes do Telegram, contudo, os apoiadores de Bolsonaro convocavam abertamente as manifestações golpistas da semana pós votação. Em áudio atribuído a Eduardo Bolsonaro que circulou nestes grupos, a mensagem é: temos que “mostrar que não aceitamos ser governados por um narcoditador“, a “reclusão do Bolsonaro” é “recado claro”, “vamos aos milhões nas ruas, dizendo que não aceitamos [o resultado das eleições]”.
A infiltração de pessoas do campo democrático e pesquisadores nesses grupostem permitido captar esses movimentos e precisa ser cada vez mais ativa.
Em outras pesquisas, apresentadas no Blog e no portal do SoU_Ciência, temos estudado a influência do negacionismo na pandemia, como o movimento anti-vacina e suas variantes. Sabemos que os efeitos das distorções criadas pelo negacionismo podem ser nefastas e causar prejuízos.
Por isso, os fatos ocorridos neste últimos dias, podem indicar que estamos avançando para camadas mais profundas do negacionismo, como construção social enraizada inclusive no inconsciente coletivo. Uma espécie de disjunção cognitiva que leva a uma ruptura com a realidade social partilhada. E isso não é apenas patológico, é um fenômeno socialmente construído pelas lideranças extremistas sobre suas bases amedrontadas e em posição de guerra.
Nos últimos meses, o fosso entre realidade e fantasia para essa parcela da população está se ampliando rapidamente, pela ação de propagadores de ‘conteúdo’ sem lastro real nas redes digitais, na circulação frenética de “medos e delírios” empacotados na forma de memes, vídeos de tik-tok e áudios de telegram/whatsapp, como salsichas em uma fábrica de ‘embutidos simbólicos’ para afetar a psicologia das massas.
Como antídoto, temos mostrado como a ciência se tornou importante força política nos últimos anos, e como nossa sociedade, em defesa da vida, passou a impor limites às mentiras vindas do Planalto e outras fontes, em busca de conhecimento cientificamente embasado. A “onda pró-ciência” no Brasil, em reação ao comando do país por negacionista, é um fenômeno comprovado em diversos levantamentos de opinião, grupos focais e análises de redes e espaços na mídia que realizamos.
A ciência entrou na ordem do dia, a população passou a reconhecer a importância de cientistas, das universidades, institutos de pesquisa e de produção de vacinas. No entanto, parece que vivemos agora, na derrota de Bolsonaro nas urnas, um efeito rebote do negacionismo, como um suspiro delirante.
Já era perceptível que a negação da evidência (científica, histórica, jornalística, documental) como campo da política na pós-verdade estava na base de teorias da conspiração das mais escatológicas, como a famosa “mamadeira de piroca”, a QAnon e suas redes de pedofilia.
Mas o que se vê, de segunda- feira para cá, nas estradas e na frente dos quartéis, é uma fração do extremismo de direita que foi completamente enredada pelos seus canais de circulação de narrativas fantasiosas, persecutórias e mesmo alucinadas que se desprendem de vínculos com a mais básica checagem de fatos – como a gritaria produzida com a suposta prisão de Alexandre de Moraes, ‘fato’ que circulou apenas na realidade paralela destes grupo.
E, ao que tudo indica, esse ativismo zumbi deve se massificar e precisa ser enfrentado.
O pedido de intervenção e golpe, que já se ouvia nas ruas desde 2014, e que foi alimentado por Bolsonaro e seguidores, retorna agora em forma catártica, associada a transes de fé e possessões típicas do neopentecostalismo.
Estaríamos diante de um novo messianismo, não mais focado na figura do líder Bolsonaro (derrotado e por alguns já considerado parte do passado), mas na esperança de uma insurgência salvacionista dos militares?
O clima de polarização do período de 2014 a 2016, instaurado pelas mobilizações para a destituição da presidente Dilma, voltou. A extrema-direita, dada a inviabilidade objetiva do golpe (sem apoio interno suficiente e nenhum apoio externo), transformará essa indignação e revolta em força subjetiva. Uma oposição nas ruas sem descanso, pois sua base é movida por um sistema de crenças inabalável, em estágio de convicção e devoção que transitam da religião para a política.
O negacionismo que temos pela frente tem raízes cada vez mais profundas e inamovíveis. Como fazer frente a massas que saem às ruas vivendo uma realidade paralela criada “em laboratório” das guerras híbridas? Temos que ficar atentos, estudar, e planejar como agir, democraticamente.
A promoção da educação e da ciência será fundamental, mas não será suficiente. A frente ampla pela democracia que elegeu Lula terá que ser uma frente ampla pela qualificação do debate público e pela formação de cidadãos informados e reflexivos, capazes de decidir com independência, discernimento e ponderação. Sua atuação passará necessariamente pela apropriação e utilização de todas as plataformas de comunicação disponíveis e acessadas pela maior parte da população, numa perspectiva construtiva e educativa.
Conseguiremos treinar algoritmos para o esclarecimento ou só para a propagação do ódio e do medo? Conseguiremos que as bolhas voltem a se conectar com bases factuais, históricas e científicas ou estão sugadas por um buraco negro mítico-digital pré e pós-moderno?
Uma coisa parece ser certa: o governo ‘Lula 3’ se defrontará com uma oposição como nunca teve antes – a extrema-direita está mais forte, organizada e delirante no Brasil do que nunca, e sabe como ocupar as ruas e as redes, os corações e as mentes de seus seguidores. Caberá a nós seguir limitando seu crescimento, dialogando com os que defendem a democracia e reafirmando os valores de uma sociedade informada, justa, plural, solidária, sustentável e pacífica.