Quase dizimados após contato forçado na década de 1970, povo Karipuna volta a temer risco de genocídio; território está cercado por madereiros e grileiros que utilizam esquema para legalilzar madeira nobre roubada.
A Terra Indígena Karipuna, em Rondônia, foi a mais desmatada entre as 69 terras indígenas que estão no entorno da rodovia BR-319, segundo dados de 2022 compilados em relatório inédito do Observatório da BR-319, uma organização da sociedade civil que se propõe a desenvolver, reunir e disseminar informações e pesquisas feitas na área de influência da BR-319 .
O projeto para reconstrução da rodovia, que liga Porto Velho (RO) a Manaus (AM), foi retomado pela gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e é apontado como um dos principais fatores do aumento do desmatamento da floresta amazônica.
Até 2015, a Terra Indígena Karipuna era exemplo de preservação na Amazônia. O povo, que quase foi dizimado na década de 1970 após um primeiro contato desastroso com não indígenas, viveu até então sem registros de grandes desmatamentos. Realidade que mudou drasticamente nos últimos anos.
Do desmatamento praticamente zero até 2015, a TI Karipuna se tornou a quarta mais desmatada em toda aa Amazônia em 2022. Lideranças Karipuna denunciam que novas ofensivas dos invasores impõem medo e terror à comunidade, que agora está confinada em uma área restrita do seu próprio território, com dificuldades para acessar regiões de coleta de castanha e açaí, e vendo dia a dia redução na oferta de pescado e caça.
O desmatamento no território Karipuna está associado ao comércio ilegal de madeira nobre que utiliza serrarias legalizadas nos distritos vizinhos à terra indígena, onde ocorre o processo de esquentamento da madeirada roubada, segundo as investigações da Polícia Federal.
Desde 2015, essa rede criminosa já destruiu 6 mil hectares de floresta preservada no território. O ano de 2022 foi o mais devastador: ao longo de nove meses, a terra indígena esteve entre as 10 mais desmatadas da Amazônia, segundo destaca o relatório Observatório da BR-319 (OBR-319), publicado nesta terça-feira, 28: “Desmatamento e focos de calor na área de influência da rodovia BR-319”.
Acesse o relatório na íntegra / Reprodução da capa
Só no ano passado, foram devastados 1.733 hectares na TI Karipuna, praticamente metade de todo o desmatamento registrado nas 10 terras indígenas mais impactadas no entorno da BR-319, onde foram derrubados 3.678 hectares. Além disso, o território também foi o que mais queimou nessa região da Amazônia, concentrando o maior número de focos de queimadas, segundo o OBR-319.
Os indicadores são estimativas produzidas pelo Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD), do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) e do Programa Queimadas, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), e compilados pelo OBR-319.
Em agosto do ano passado, reportagem da InfoAmazonia registrou os incêndios dentro do território Karipuna.
Desde 2017, o líder Adriano Karipuna denuncia invasões no território. Segundo ele, os invasores lotearam porções de floresta entre si, como se fossem eles os donos do território, e abriram estradas ilegais que ligam áreas de extração de madeira aos distritos de União Bandeirantes, que faz parte de Porto Velho, e Jacinópolis, em Nova Mamoré.
“Já fizemos várias denúncias nos últimos anos, mas o desmatamento continua. A floresta continua sendo destruída e com isso nosso povo está perdendo seu território e sua cultura”, disse Adriano Karipuna à reportagem da InfoAmazonia.
Já fizemos várias denúncias nos últimos anos, mas o desmatamento continua. A floresta continua sendo destruída e com isso nosso povo está perdendo seu território e sua cultura
Adriano Karipuna
Sem fiscalização dos órgãos ambientais, os próprios Karipuna fazem o monitoramento do território, registrando desmatamento e queimadas em fotos e vídeos com coordenadas geográficas dos locais onde a floresta está sendo derrubada. As informações coletadas são encaminhadas para autoridades e contribuem para produção de provas nas ações do MPF.
Em janeiro deste ano, Adriano voltou às áreas de desmatamento e flagrou placas instaladas pelos invasores. Em uma delas estava escrito: “Por favor, não mexa na minha madeira”.
“Estamos enfrentando escassez de peixes e de caça, e o desmatamento dificulta nosso acesso aos recursos naturais como o açaí e a castanha. Além do terror psicológico que temos passado com essas invasões”, destaca Adriano, apontando que seu povo volta a conviver novamente com o risco iminente de um genocídio, que ameça a permanência da etnia em seu território.
Área desmatada registrada pelos próprios karipunas em janeiro de 2023.
Décadas de denúncias
Até a década de 1970 um grupo Karipuna conseguiu viver isolado do mundo dos não-indígenas, mas acabou sucumbindo ao contato forçado que culminou em mortes por epidemias e perdas culturais. O povo quase foi extinto, chegando a ficar reduzido a apenas oito pessoas.
O território só foi homologado em 1998, mas a proteção legal no papel não tem sido suficiente para frear a ofensiva dos invasores que se intensificou a partir de 2015.
Filho da anciã Katika, uma das oito sobreviventes da experiência traumática de contato que quase exterminou seu povo, Adriano Karipuna já denunciou o risco de genocídio de sua etnia em mais de 10 paísespor onde passou e para todas as esferas de fiscalização do governo brasileiro.
Gangue da madeira
Uma investigação da Polícia Federal que apura a atuação de madeireiras no distrito de União Bandeirantes aponta para existência de uma organização criminosa que opera um sofisticado esquema para burlar os estoques de madeira através de dados falsos no Documento de Origem Florestal (DOF).
Segundo as investigações, os criminosos utilizavam créditos falsos de madeira para legalizar o produto roubado na terra indígena, permitindo a circulação da madeira para fora da região, no mercado nacional e internacional.
Essas madeireiras estão espalhadas no entorno da terra indígena e são abastecidas regularmente com madeiras nobres fruto do desmatamento ilegal.
Um dos esquemas investigados envolve três empresas e sete pessoas denunciadas pelo Ministério Público Federal (MPF) por crimes ambientais, crime contra a fé pública, falsidade ideológica e lavagem de dinheiro.
Apontado como um dos líderes do esquema, Bruno Eduardo Mariano, segundo a Polícia Federal, operou diversas madeireiras na região e movimentou milhões de reais em madeira ilegal. Pelo menos duas madeireiras controladas por Mariano de forma oculta, a Teka Madeiras e a Rio Madeira, somam mais de R$ 6,3 milhões em multas ambientais por comercializar madeira sem comprovação de origem.
Mesmo assim, após denunciado e multado, o esquema de Mariano seguiu operando ilegalmente e o empresário obteve licenças da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Ambiental (Sedam) para operar outra madeireira, a MBL Madeiras, também no distrito de União Bandeirantes.
Todas as empresas relacionadas a Mariano funcionavam no entorno da TI Karipuna, com autorizações do governo de Rondônia. Segundo apontam as investigações da PF, o mesmo esquema foi repetido por outras serrarias da região, que negociam entre si créditos falsos para legalizar a madeira retirada da terra indígena.
Mariano chegou a ser preso em 2019, e responde o processo em liberdade. A reportagem fez contato com os advogados do empresário, mas eles não quiseram se manifestar sobre o caso.
Entre 2016 e 2022, a Sedam emitiu licenças para 50 empresas explorarem madeira em União Bandeirantes, segundo dados do Portal da Transparência de Rondônia.
A estrada aberta no interior da terra indígena liga áreas de extração de madeira ao distrito de União Bandeirantes. Fonte: Planet Inc/InfoAmazonia
Em setembro do ano passado, o MPF obteve decisão favorável em Ação Civil Pública que condenou a Fundação Nacional do Índio, hoje Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o governo do estado de Rondônia a garantirem a proteção da terra indígena.
Na ação, os procuradores denunciam que as invasões, com as finalidades de “grilagem” de terras públicas e extração ilegal de madeiras, eram de pleno conhecimento desses órgãos.
Na decisão, o governo do estado de Rondônia foi intimado a apresentar auditoria dos planos de manejo e concessões para exploração de madeira nas áreas do entorno da Terra Indígena Karipuna.
Em manifestação na ação, a Funai e o Ibama informaram que têm realizado ações de combate ao desmatamento para proteção do território indígena. Já o governo de Rondônia ingressou com embargo da decisão e manifestou “contradição quanto à sua responsabilidade” sobre a proteção do território Karipuna e pediu exclusão das suas obrigações na decisão. Em janeiro deste ano, a Justiça negou o pedido do governo de Rondônia mantendo as obrigações da decisão.
Logística madeireira pela 319
Vista do alto, pelas lentes dos satélites, a Terra Indígena Karipuna é um oásis verde em meio à destruição da floresta amazônica em Rondônia. O desmatamento consumiu quase toda floresta do entorno da terra indígena, incluindo a Reserva Extrativista (Resex) Jaci-Paraná, área contígua do território e que não por acaso foi a unidade de conservação (UC) mais desmatada na área da BR-319 no ano passado, onde foram derrubados 4.254 hectares de floresta.
Em 2021, o governador Marcos Rocha sancionou a lei complementar estadual n° 1.089, que reduziu os limites da Resex Jaci-Paraná para legalização de áreas de pastagem, o que também facilitou a logística dos invasores da terra indígena. A lei foi considerada inconstitucional em novembro do mesmo ano, mas o estrago já estava feito. Pouco da floresta amazônica ainda resta na Resex, onde a maior parte da área foi convertida em pasto para criação de gado.
A logística madeireira e agropecuária no entorno da terra indígena é forte aliada do projeto de reconstrução da BR-319, e por onde o desmatamento mais avança na Amazônia.
Sob a gestão do ex-presidente Bolsonaro, o projeto da rodovia conseguiu a emissão de uma Licença Prévia do Ibama em julho de 2022, mesmo após diversos alertas da sociedade civil organizada, inclusive do OBR-319, e do MPF, que apontaram falhas no licenciamento ambiental e violações de diretos ambientais e dos povos indígenas.
A reconstrução do asfalto nos 885 quilômetros da rodovia projetada pela Ditadura Militar e que corta grande porção de floresta já esteve na pauta dos governos Fernando Henrique (1994-2001), Lula (2003-2010) e Dilma (2011-2016). Todos esbarraram na questão ambiental.
Os Karipuna e outros povos que estão na área de impacto da rodovia foram ignorados nos processos de consultas conforme orienta a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), e da qual o Brasil é signatário. A gestão passada da Funai, chegou a ser acusada de manipular o processo de consulta aos povos indígenas para acelerar o licenciamento da obra, e que foi encerrado sem consultar os povos nas 69 terras impactadas pela rodovia.
No relatório publicado nesta terça, o OBR-319 cobra que a nova gestão do governo Lula trate a obra da rodovia “com responsabilidade ambiental, social e econômica”.
Acreditamos que o futuro de parte importante da Amazônia e de seus moradores depende da forma como esse empreendimento será conduzido nos próximos anos
relatório Observatório da BR-319 (OBR-319): “Desmatamento e focos de calor na área de influência da rodovia BR-319”
“Os povos e comunidades tradicionais devem ser ouvidos e consultados, já que serão os mais impactados pela rodovia. Acreditamos que o futuro de parte importante da Amazônia e de seus moradores depende da forma como esse empreendimento será conduzido nos próximos anos”, destaca trecho do documento da OBR-319.