UMA CARTILHA PARA COMBATER O PRECONCEITO CONTRA INDÍGENAS

UMA CARTILHA PARA COMBATER O PRECONCEITO CONTRA INDÍGENAS

Publicação produzida em Roraima orienta evitar expressões como “caboclo” e “civilizado”

Elane Oliveira, na Revista Piauí

O jornalista Ghenn Derson Nicáccio, indígena do povo Wapichana, se lembra bem de que, na escola, as outras crianças o olhavam de um jeito diferente. Quando queriam agredi-lo, seus colegas o chamavam de “índio” e “caboclo”. Ele era um menino tímido e tinha dificuldade de se relacionar com as pessoas e participar de apresentações na escola. Nunca revidava as agressões verbais. Além de indígena, Nicáccio também é homossexual – o que, na escola, se transformava em duplo motivo de preconceito. Várias vezes pensou em abandonar o colégio.

“Tenho 42 anos e me lembro claramente de ter uma professora que me chamava de ‘caboclo’ na época em que cursei o ensino médio, há mais de 25 anos. Nunca tive apoio. Hoje se fala em empoderamento dos indígenas pela família, apoio da escola, mas essas coisas não eram comuns na minha época de colégio. Ninguém se ofereceu para me ajudar e muito menos percebeu que eu estava precisando de ajuda”, conta.

“Caboclo”, ou “caboco”, como é comum se dizer em Roraima, é uma das expressões consideradas preconceituosas listadas na minicartilha antirracista indígena editada pelo IFRR (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Roraima). A cartilha é um dos desdobramentos do projeto “Racismo e suas implicações nos povos indígenas de Roraima. Percepções de estudantes do IFRR nos campi Amajari e Boa Vista Zona Oeste”, criado em 2021 pelo professor de história Marcos Oliveira e pelo estudante bolsista Renato Gabriel Francisco para discutir o preconceito linguístico contra povos indígenas.

Foi durante a pesquisa para seu doutorado em Sociologia da Educação, quando analisava as trajetórias de alunos indígenas do campus Amajari do IFRR, que Oliveira percebeu que muitos deles tinham dificuldades em assumir suas identidades. Também se sentiam pressionados pelas críticas e pela falta de aprovação dos não indígenas, além de não gostar da forma como eram tratados. Oliveira se inspirou nesses relatos para iniciar o projeto que teria como resultado a cartilha. “Buscando uma solução para essa situação cotidiana, resolvemos criar uma cartilha para orientar indígenas e não indígenas sobre como lidar com o racismo e reagir a essas atitudes. Procuramos chamar a atenção para o problema e estimular ações na sociedade para enfrentar o problema do racismo contra indígenas no nosso estado”, conta o professor, que é doutor pela USP (Universidade de São Paulo).

Roraima abriga onze etnias, e 11% dos 634 mil habitantes do estado se autodeclaram indígenas – a maior proporção de população indígena entre todos os estados brasileiros. No IFRR, há cerca de 26% de alunos indígenas, pelos dados de 2021. Na UFRR, 13%.

Estudante da etnia macuxi e bolsista do projeto, o estudante Renato Gabriel Francisco conta que já viveu experiências racistas no meio acadêmico. Quando fazia o curso técnico em agropecuária, desenvolveu um projeto de inseminação artificial em bovinos e ouviu de um colega que aquilo não era para “pessoas como ele”, pois o projeto só daria certo se liderado por não indígenas. Sua reação foi ignorar os comentários e tentar buscar uma solução para que outros indígenas não vivessem o mesmo preconceito. Trocando ideias com o professor Oliveira, os dois decidiram criar a minicartilha. O estudante foi responsável pela pesquisa no campus Amajari, unidade do IFRR que fica a mais de 150 km de Boa Vista. Lá ele entrevistou os estudantes sobre como viviam e o preconceito linguístico no cotidiano. “Elaboramos a cartilha de acordo com a necessidade das pessoas em entender o que realmente é o racismo, então a criamos direcionada tanto para indígenas quanto para não indígenas”, disse Renato.

Os pesquisadores listaram situações e expressões que criavam algum tipo de incômodo entre alunos indígenas. Descobriram que as situações de preconceito vividas pelos estudantes são mais comuns do que se pensa, mas muitas vezes são naturalizadas tanto pelos ofendidos como pelos autores das ofensas. “Caboclo”, por exemplo, é uma expressão usada para se dirigir a indígenas que a população branca considera “civilizados”. Muitas vezes, porém, os alunos relataram ser alvo de xingamentos como “burro”, “ignorante” e “lerdo”, apenas por serem indígenas.

Acartilha lista outros exemplos de expressões racistas. Entre eles, relacionar pinturas corporais a sujeira ou dizer que o indígena não poderia estar morando na cidade e deveria viver “no mato”. Outra forma de desvalorizar pessoas indígenas – e também condenada na cartilha – é dizer que elas não são capazes de se equiparar a uma pessoa branca, seja em características físicas, seja em bens materiais. A cartilha também condena declarações que menosprezam a capacidade do indígena de ocupar lugares e cargos na sociedade – como afirmar, por exemplo, que eles não têm condições de se tornarem professores, advogados ou médicos, entre outras profissões.

A cartilha também explica o que fazer diante dessas situações. Para quem é alvo de preconceito, a cartilha orienta a expressar o incômodo, exigindo que tais  expressões não sejam usadas contra você ou seus semelhantes. Para quem pratica, ao ter conhecimento de que o uso dessas palavras ao se referir a indígenas é pejorativo, a orientação é pedir desculpas e passar esse conhecimento a amigos, familiares e conhecidos.

A cartilha já está sendo utilizada em rodas de conversas com os estudantes dos campi do IFRR em Boa Vista e Amajari. Exemplares impressos serão entregues às unidades do IFRR do estado. A publicação está disponível no site do IFRR e pode ser acessada aqui.

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