Por MST – A coevolução entre coletivos humanos e natureza produziu as bases de toda a natureza que conhecemos. Os bilhões de anos de surgimento das formas inorgânicas e orgânicas existentes em nosso mundo encontraram um momento geologicamente ímpar quando do surgimento de nossos ancestrais. A partir de então, a práxis produziu uma nova natureza.
As formas sócio-históricas de organização dos seres humanos modificaram a natureza exterior e, com isso, também se modificaram, construindo aquilo que Karl Marx veio chamar de metabolismo ser humano-natureza.
Foi no período histórico quando a estrutura de classes ainda não havia se estabelecido que nossas necessidades eram superadas nessa relação metabólica socioecológica. O elemento central que mediava essa relação era o trabalho. Não aquele alienado, mandado por um patrão, por uma elite, mas sim aquela síntese de força física, capacidade intelectual e exercício histórico.
É esse bailado milenar entre povos em diferentes regiões do mundo e o ambiente ao redor que produziu a incrivelmente diversa base alimentar que possuímos. Agricultura e pecuária, agrobiodiversidade, sistemas biogeográficos e biomas foram forjados nessa relação.
Porém, a estrutural transformação promovida pelo modo de produção capitalista foi, século após século, alterando esse metabolismo.
O que antes estava circunscrito aos feudos europeus ou aos Omáguas amazônidas foi sendo dragado para a dinâmica capitalista a partir da estrutura da propriedade privada. Com isso, foi possível desenvolver a mais valia sobre as pessoas trabalhadoras e a renda sobre os bens comuns da natureza.
É desse processo que nasce a forma contemporânea de exploração capitalista da natureza. A ruptura do metabolismo socioecológico entre coletivos humanos e natureza possibilitou um nível inimaginável de exploração dos corpos humanos e dos seres orgânicos ou inorgânicos. A acumulação originária destruiu os povos milenares na África, Américas e Ásia, e expulsou do campo dezenas de milhões de famílias camponesas.
Agora, vivemos uma nova etapa dessa exploração capitalista. Em seu estágio atual, o capitalismo encontra-se sob hegemonia do capital financeiro, que busca acelerar intensamente as possibilidades de lucro, tornando sua dinâmica cada vez mais bárbara e violenta.
O que nas décadas de 1960 e 1970 era “revolução verde”, hoje são centenas de milhões de hectares transgênicos, com bilhões de litros de venenos, para produzir basicamente seis espécies (soja, milho, algodão, cana, eucalipto e carne).
A concentração fundiária histórica se aliou às grandes corporações transnacionais e desenvolveu uma forma absurda de destruição ambiental e expulsão de famílias trabalhadoras do campo: o agronegócio.
Caminhando nas trilhas da contra-hegemonia, o campesinato mundial, em sua diversidade, resistiu de forma ativa a esse avanço das elites sobre o campo. E, a partir dessa luta, desenvolveu a maior síntese de classes da atualidade: a Soberania Alimentar.
Na década de 1990, La Via Campesina produziu a compreensão de que as sociedades não podem se desenvolver se não possuírem a autonomia em definir como será seu abastecimento alimentar, como e por quem o alimento será produzido.
Alimento, portanto, está diretamente vinculado a uma construção política. Ninguém se alimenta exclusivamente de soja e milho. Tampouco vive as alegrias e felicidades que a comida possibilita – culturais, afetivas e da satisfação alimentar – consumindo essas commodities. Alimento é para o estômago e para a fantasia.
Fruto do avanço conservador, neoliberal e fascista durante o governo Bolsonaro, o Brasil voltou ao mapa da fome em 2021. A insegurança alimentar quase dobrou, segundo FAO, ONU e OMS. Para se ter noção da gravidade, entre 2018 e 2020, a fome atingiu 7,5 milhões de brasileiros. Já entre 2014 e 2016, esse número era bem menor: 3,9 milhões.
Naquele período, de acordo com os diferentes níveis da insegurança alimentar, índice que trabalha as gradações “grave, média e leve”, podem ser resumidos na constatação que 116 milhões de pessoas, 60% da população, são privadas dessa dimensão de totalidade da alimentação: comem o que estiver disponível e não sabem se terão a alimentação garantida nos próximos meses.
É neste contexto que a soberania alimentar é determinante para o nosso país. Não é uma pauta dos movimentos camponeses, mas sim de toda a sociedade brasileira.
Como organizar o abastecimento saudável do povo brasileiro hoje é elemento fundante de qualquer projeto que se projete como nacional.
E é sob essa compreensão que se estrutura a agroecologia. Não é possível pensar soberania alimentar sem formas contra-hegemônicas de produção dos alimentos. Precisamos de um povo brasileiro alimentado, sadio, e de nossa natureza cuidada, para nos reorganizarmos como país.
A agroecologia é fruto de milênios de aprendizado do povo, que mesmo violentado em seu território ou desterrado de sua mátria, reconstrói seu metabolismo socioecológico.
A agroecologia se nutre de práticas e resistências ancestrais que dialeticamente se desenvolveram durante o capitalismo.
A agroecologia é também a reconstrução do conhecimento científico. Se entendemos que esses saberes foram desprezados do conhecimento científico manipulado pelas transnacionais, também devemos entender que a agroecologia é essa possibilidade de mediação entre os conhecimentos ancestrais e as possibilidades do conhecimento científico.
Atualmente, o nosso Sistema Nacional de Pesquisa Agropecuária conta com mais de 200 instituições voltadas para o desenvolvimento quase que exclusivo das commodities. Quão extraordinário seria nosso desenvolvimento agropecuário se essas instituições estivessem pautadas pela soberania alimentar e a agroecologia?
Essa frente de articulação de conhecimento científico e acadêmico dialogando com o trabalho e o saber camponês é determinante para avançar em um amplo processo de transição agroecológica. Popularizar e democratizar o desenvolvimento e acesso a tecnologias para produção agroecológica é o que vai nos permitir superar desigualdades históricas. Avançar na produção e socialização de sementes crioulas, tradicionais e livres de transgênicos, bioinsumos, mecanização adequada, assistência técnica popular, recuperação ambiental são ações que fortalecem o avanço da agroecologia.
Mas agroecologia não é apenas manejo na produção de alimentos. Para que nossas capacidades agroecológicas estejam desenvolvidas, é determinante a reconstrução das relações humanas sob bases emancipatórias.
A superação do racismo, da LGBTfobia e do patriarcado está diretamente ligada a novas práticas produtivas. Assim como o exercício da cooperação e da solidariedade, em suas diversas formas, é um pressuposto da agroecologia.
Nossa sociedade brasileira, em plena década de 2020, se defronta com sua chaga agrária de forma brutal. A fome, a crise ambiental, a desigualdade social e a organização política brasileira continuam alicerçadas na questão agrária, que tem em seu polo burguês o agronegócio.
Está no centro de um projeto de país que confronte o projeto das elites: a Reforma Agrária Popular, a defesa dos territórios indígenas e quilombolas, a Soberania Alimentar e o cuidado com os bens comuns da natureza. E todas essas conquistas devem ter como substrato fecundo a agroecologia.
Sobre os autores
Bárbara Loureiro faz parte da coordenação nacional do MST e é mestre em meio ambiente e desenvolvimento rural.
Luiz Zarref faz parte da coordenação nacional do MST e é doutor em geografia.