Infoamazonia, por Fábio Bispo – Durante evento com produtores rurais do estado, o deputado Lúcio Mosquini (MDB-RO) prometeu que órgãos do governo federal vão alterar limites geográficos da demarcação nos ‘próximos dias’. Medida visa beneficiar, principalmente, criadores de gado, que têm propriedades sobrepostas ao território indígena. Funai confirma pedido do Incra para avaliar possíveis erros de marcos físicos.
O deputado federal Lúcio Mosquini (MDB-RO) afirmou ter articulado com o governo federal a ‘remarcação’ dos limites físicos da Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau (TIUEWW), localizada em Rondônia. Durante um encontro com produtores rurais no final de março, o parlamentar declarou que um erro na demarcação física do território foi identificado e que “nos próximos dias a Funai vai fazer esse novo contorno”. As declarações têm gerado desconfiança em indígenas e preocupação em organizações que atuam no território.
“Eu consegui, depois de quase dez anos lutando, acho que ninguém nunca conseguiu isso no Brasil, uma remarcação duma reserva indígena. Isso aí é a coisa mais difícil do mundo, você conseguir aí. E aqui, nos Uru-Eu-Wau-Wau, nós temos uma situação onde em algum momento o lote invadiu a reserva e a reserva invadiu o lote. Mas tudo é erro de demarcação”, afirmou o parlamentar durante a entrega de máquinas agrícolas para a Associação dos Produtores Rurais da Oitenta e Quatro (ASPRUOQ), no município de Mirante da Serra (RO), que faz divisa com o território indígena.
A demarcação da Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau (TIUEWW) começou em 1985 e a área ocupada tradicionalmente pelos indígenas foi homologada em 1991. O território possui 1,8 milhões de hectares e abriga nove povos, incluindo quatro grupos isolados. Há registros de conflitos de terras com fazendeiros, principalmente, para criação de gado, em diversas frentes de invasões.
O território está entre as oito terras indígenas (TIs) cuja decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) para retirada de invasores começou pela TI Yanomami, em janeiro de 2023. O governo federal tem até dezembro de 2024 para desocupar as sete terras restantes.
Em pelo menos três pontos da terra indígena, fazendeiros questionam os limites físicos da TI, que foram demarcados pelo Exército na década de 1980. Segundo essas contestações, a demarcação física, com marcos que indicam os limites geográficos, teria interpretado o memorial descritivo das coordenadas do território de forma equivocada. Como na época não havia demarcação por GPS, em muitos pontos, o memorial descreve acidentes geográficos, como rios ou igarapés, para determinar onde estavam os limites do território.
Um dos principais focos dos conflitos na TIUEWW está na região conhecida como Burareiro, uma área de cerca de 15 mil hectares ocupada por fazendas de gado. A disputa nessa área tem origem no projeto de expansão territorial da ditadura militar para a Amazônia, que na década de 1970 instalou 115 famílias dentro do território tradicionalmente ocupado. Com a homologação do território, os títulos de terras cedidos pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) perderam validade legal, mas a região acabou novamente invadida com incentivo de políticos locais da época.
A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) aguarda há quase 20 anos uma decisão da Justiça sobre o pedido de reintegração de posse dessa área. As fazendas nessa região fornecem gado para grandes frigoríficos e redes de supermercados, como a JBS e o grupo francês Casino, o que chegou a motivar ações judiciais na França por violações dos direitos dos povos indígenas.
Além do Burareiro, outras duas áreas do território são alvos de disputas na parte leste da terra indígena. Uma delas no chamado marco nº 26, próxima de áreas ocupadas por grupos isolados, no município de São Miguel do Guaporé, e outra no município de Jaru.
Advogada diz que não há base legal para questionar erro de demarcação depois de 30 anos
No vídeo do evento com produtores rurais, Mosquini afirma que “com recurso do Incra, foi feito um novo geo [em referência a georeferenciamento, o referenciamento geográfico dos limites da terra] desse confronto – de terras, não de pessoas. E agora, nos próximos dias, a Funai vai fazer esse novo contorno, esse novo ‘geo’, para acabar com o problema histórico que tem aqui em Tarilândia. Isso aí é um trabalho de bastidor lá em Brasília, e nós conseguimos”. Tarilândia é distrito de Jaru, onde há contestação dos limites da TI.
A advogada Juliana Batista, do Instituto Socioambiental (ISA), afirma que mesmo que houvesse erro na demarcação física do território, como aponta o deputado Lúcio Mosquini, o prazo legal para questionamentos já estaria prescrito.
“Não cabe, neste momento, uma revisão do ato administrativo, depois de mais de 30 anos. Isso traria uma insegurança jurídica não só para esse caso, mas em todo o país. Se houve erro, ele teria que ser questionado em cinco anos, como determina a lei”, explicou.
Já a indigenista Ivaneide Bandeira Cardozo, da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé, vê com preocupação as afirmações do parlamentar, principalmente pelo efeito que isso pode ter nas áreas de maior conflito, como é o caso do Burareiro.
Em maio do ano passado, um grupo de fazendeiros cercou Neidinha, como é conhecida a indigenista, na região do Burareiro, sob a alegação de que estavam invadindo áreas privadas. Além de Neidinha, o grupo incluía a líder Txai Suruí, o artista Mundano e documentaristas que acompanhavam os indígenas Uru-Eu-Wau-Wau para a realização de um ato justamente contra a invasão naquela parte do território.
Para Neidinha, a promessa de Mosquini, em período pré-eleitoral, pode criar falsas expectativas e aumentar os conflitos. “A terra indígena passou por todo processo de demarcação e não cabe um novo georreferenciamento. O que esse deputado está fazendo é promover a difusão de informações falsas que contribuem para incitar o conflito na região”, afirmou Neidinha.
Deputado nega relação com Burareiro
Em entrevista à InfoAmazonia, Mosquini afirmou que o pedido de remarcação ao qual ele se referiu não inclui revisão dos limites da área do Burareiro. O parlamentar disse que seu objetivo é “resolver um erro da demarcação física” no leste do território, no município de Jaru.
“Eu não tenho nenhum compromisso com a região do Burareiro. Politicamente, não é minha região. Em Jaru, eu fiz 13 mil votos”, justificou.
Sobre a alteração nos limites do território, o parlamentar minimizou o impacto legal sobre a área homologada e diz que não haveria alteração no decreto de demarcação, mas sim na marcação física.
“Não queremos remarcar a terra indígena, não estou atrás disso. Se trata de uma correção dos marcos físicos. Quem foi lá demarcar, isso há mais de 30 anos atrás, não seguiu o que estava no decreto”, afirmou o parlamentar. A alteração, segundo Mosquini, incluiu 57 lotes que ficaram dentro do território indígena “por um erro histórico”.
“A pessoa que foi lá fazer a demarcação errou, era para seguir pelo segundo igarapé como estava no decreto e ela foi pelo primeiro”, explica. Por estarem dentro da área demarcada como terra indígena, as propriedades rurais enfrentam dificuldades para negociar suas produções.
Sobre a informação da ida de técnicos da Funai à região para realizar a alteração dos marcos, Mosquini diz que a solicitação foi realizada pelo Incra e aguarda um posicionamento do órgão indigenista. “Se confirmado que não está como determina o decreto, terá que ser corrigido”, afirma.
Presente na mesma reunião de Mosquini com os produtores rurais, o líder indígena Tambura Amondawa rebateu as declarações do deputado ainda no evento, dizendo que as afirmações do deputado “incitam o conflito” entre indígenas e fazendeiros.
“Se por um momento alguém disser que vai regularizar aquela terra ali para vocês, jamais caiam, puxem o histórico, porque jamais vão conseguir regularizar a terra indígena [para fazendas]”, afirmou diante do parlamentar, que não rebateu o líder indígena no evento.
Mosquini, que é dono de fazendas e criador de gado em Rondônia, também é um dos principais defensores da lei do marco temporal. A lei abre brechas para questionar demarcações indígenas no país, estabelecendo que somente as áreas que estavam ocupadas por indígenas em 05 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal, podem ser demarcadas.
O parlamentar presidiu a sessão que aprovou a leina Câmara dos Deputados, em maio do ano passado. Em setembro, o STF rejeitou a legalidade do marco temporal indígena. O presidente Lula (PT) vetou a lei, mas os vetos foram derrubados e o próprio Congresso sancionou a nova legislação.
Pelo menos quatro ações questionam no STF a constitucionalidade da lei aprovada no Congresso. Os pedidos aguardam manifestação do relator, o ministro Gilmar Mendes.
Mosquini nega que a demanda que busca rever os marcos físicos da TIUEWW tenha relação com a lei que institui o marco temporal em terras indígenas e diz que, no momento, a tese aprovada pelo Congresso não se aplicaria em casos de Rondônia. “Eu defendo o marco temporal com unhas e dentes com toda lucidez, mas não temos em Rondônia nenhum conflito com relação ao marco temporal”, disse à reportagem, afirmando não haver nenhum interesse particular com as áreas indígenas em seu estado. “É uma defesa conceitual, não tem nenhuma área pela qual eu esteja militando ou brigando. Mas se tiver eu vou defender o marco temporal, não vou me omitir”, afirmou.
Funai confirma pedido de revisão dos marcos físicos e Incra recua na retirada de gado
Questionada pela reportagem, a Funai, por meio de sua assessoria de imprensa, informou que “não há, por parte da Fundação, previsão de alteração dos limites da TI Uru-Eu-Wau-Wau”, mas reconhece que existe demanda apresentada pelo Incra apontando um possível “equívoco de interpretação do decreto [de demarcação]”, que pode “ter culminado em deslocamento de marcos” nos município de Jaru e São Miguel do Guaporé. (leia aqui a íntegra da nota da Funai)
“A averiguação da demanda em campo é, inclusive, ação preparatória para a execução do previsto na ADPF 709: Instrumento jurídico pelo qual a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) propôs, em agosto de 2020, a retirada de não indígenas de áreas indígenas demarcadas [para retirada de invasores do território] cuja execução está sob responsabilidade da Secretaria-Geral da Presidência da República”, informou a Funai.
Em abril deste ano, o Incra, a Funai e o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) se reuniram para tratar dos conflitos na terra indígena, especialmente na região do Burareiro. No encontro, o diretor de Governança Fundiária do INCRA, João Pedro Gonçalves, se comprometeu a buscar uma solução para tirar “18 mil cabeças de gado de quem se diz dono de terra pública, que se diz dono de terra indígena”.
Gonçalves, que representou o presidente do INCRA no encontro, afirmou que o conflito é fruto de um erro histórico que “não pode ficar debaixo do tapete”.
No entanto, ao ser novamente questionado sobre as medidas que a autarquia tomou ou pretende tomar para retirada do gado na região, a assessoria do Incra afirmou, em nota, que “o diretor João Pedro Gonçalves nega compromisso de encontrar solução para retirada de gado da área pública”.
O órgão afirmou que tem dialogado sobre a situação da Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau com a Funai, sem maiores esclarecimentos sobre as afirmações do deputado Mosquini. (veja íntegra da resposta do Incra)
O Incra não confirmou à reportagem a existência de pedidos de revisão dos marcos físicos da terra indígena, como informados pela Funai e pelo deputado Mosquini.