IHU e Baleia Comunicação – Em menos de um ano, o Rio Grande do Sul conseguiu bater diversos recordes trágicos e agora passa pela maior catástrofe ambiental já registrada. Conforme o boletim da Defesa Civil, do final do dia 4 de maio, são 317 municípios atingidos (mais de 63% das cidades), mais de meio milhão de pessoas diretamente afetadas, 82,5 mil pessoas fora de casa, sendo 13,3 mil em abrigos e 69,2 mil desalojados, na casa de familiares ou amigos. Até o começo do domingo eram 55 mortes confirmadas e sete em investigação e ao menos 74 desaparecidos. Mas, os números devem ser ainda piores, pois há inúmeros locais ilhados e muitos resgates a serem feitos.
Na noite do sábado, 4 de maio, a Defesa Civil emitiu um novo alerta de tempestades para a metade norte do Estado e um novo mapa com a área para o risco de inundação severa. A chuva praticamente não dá trégua. Nos últimos dias a precipitação alcançou entre 500 e 600 milímetros em apenas 24 horas, volume previsto para todos os meses de outono. O nível do rio Guaíba havia alcançado 5,24 metros às 20h.
Em meio à sequência de desastres que vive o Estado desde setembro de 2023, recentemente, a Assembleia Legislativa aprovou e o governador Eduardo Leite sancionou a Lei 16.111/24. A legislação flexibiliza a construção de barragens para irrigação do agronegócio em Áreas de Preservação Permanente – APPs, na contramão de uma política de preservação ambiental, fundamental para a mitigação de eventos climáticos extremos.
Uma cegueira em relação ao colapso climático, que literalmente adentrou às casas do Rio Grande do Sul, conforme afirma o professor Francisco Eliseu Aquino, ao comentar como o lobby do agronegócio tem conexão direta com as enchentes. “A flexibilização ambiental de margens de rio, áreas úmidas e alagadas, banhados, a maior expansão sobre áreas de biomas e preservação, concorrem diretamente para amplificação da mudança climática e dos desastres”, explica o professor em entrevista por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Além da mudança climática, o bloqueio atmosférico, a saída do El Niño, os oceanos aquecidos, e uma grande onda de calor provocaram essa alta precipitação, relata Aquino. “A combinação de ciclones extratropicais entre a Antártica e o Rio Grande do Sul e o calor com bloqueio atmosférico da onda de calor do Brasil central criou o ambiente atmosférico extremo Trópico-Polo responsável por esse desastre que observamos na última semana”, esclarece o geógrafo.
Francisco Eliseu Aquino é graduado em Geografia, mestre em Geologia Marinha e doutor em Geociências, com ênfase em mudanças climáticas entre a Antártica e o Sul do Brasil, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É professor do Departamento de Geografia da UFRGS.
Confira a entrevista.
IHU – Os dados atuais sobre as enchentes, ainda em curso, dão conta de que esta deve ser a maior tragédia climática do RS. Estamos diante de uma catástrofe de que magnitude?
Francisco Eliseu Aquino – É difícil categorizar e dar a dimensão. Consideramos o evento em curso, sem dúvida, na minha interpretação e análise, ela supera com larga facilidade a enchente de 1941. Isso pelo volume de água precipitada em um curto espaço de tempo – cercas de uma semana. Comparativamente, em 1941, foram meses de chuva contínua, e aqui nós estamos falando de poucos dias de chuva excepcionalmente extrema. A condição atmosférica em que observamos esse fenômeno e essa magnitude, isto é, intenso e acelerado, é, sem dúvida, uma combinação entre oceano e atmosfera mais quentes, tem toda a questão da emergência climática. E a influência do El Niño, que facilita disparar precipitação intensa para a região Sul do Brasil, ele condiciona esse ambiente atmosférico, mas o Planeta mais quente intensifica – e muito – sistemas meteorológicos chamados de Complexos Convectivos de Mesoescala, que são esses aglomerados envolvendo tempestades com raio, granizo, vendaval e chuva muita intensa. Esses fenômenos, característicos da nossa região, estão sendo incrementados e sua capacidade de despejar chuva e também na sua duração. E, no final, para ampliar mais a dimensão desse desastre em curso, é a duração do fenômeno. Esse comportamento de um Planeta mais quente e do clima, característico da Região Sul, que rivaliza com a região Antártica, está, nesse momento, amplificando os eventos extremos em todas as épocas e meses do ano, em especial de 2023 para 2024, três inundações sem precedentes pela magnitude das três e mesmo considerando que a atual já superou a de 1941 do ponto de vista de uma comparação histórica de, pelo menos, um século.
Imagens da enchente em Montenegro/RS. O município é banhado pelo rio Caí, que no dia 1º de maio atingiu a 16,67, superando a pior cheia já registrada, em 2023, com 16 metros. As imagens foram cedidas pelo colega João Vitor Santos, que mora na cidade.
IHU – Quais foram as condições climáticas, do ponto de vista ambiental e geológico, que levaram o RS a atual situação?
Francisco Eliseu Aquino – É uma condição sinótica muito, muito diferenciada do que nós vimos no passado. Primeiro, estamos ainda em uma quarta onda de calor, uma região de bloqueio atmosférico, ar quente e seco, na região Central e Sudeste do Brasil. Esse bloqueio atmosférico gera valores de temperaturas elevadas para essa época do ano – acima de 7ºC e 10ºC pelo menos – em várias regiões por ela atingida. Esse mesmo bloqueio impede a passagem de sistemas frontais – frentes frias – e também aprisiona os ciclones extratropicais ao Sul do Rio Grande do Sul e a Sudeste do nosso Estado. Paralelamente, esse bloqueio, favorece a intensificação e a manutenção por dias do transporte de umidade da Amazônia, guiado pelos Andes até o Rio Grande do Sul. Então, a combinação de ciclones extratropicais entre a Antártica e o Rio Grande do Sul e o calor com bloqueio atmosférico da onda de calor do Brasil central criou o ambiente atmosférico extremo Trópico-Polo responsável por esse desastre que observamos na última semana. Os Complexos Convectivos de Mesoescala, que são os maiores e mais duradouros sobre o Rio Grande do Sul ou sobre o Sul do Brasil se olharmos toda a América do Sul, ganharam a condição extrema graças às mudanças do clima e o El Niño para gerar esse fenômeno que estamos presenciando.
IHU – Em setembro e novembro de 2023 houve grandes enchentes no RS. Agora, em maio de 2024, menos de seis meses depois, estamos diante de outra situação extrema. O que explica a recorrência desses eventos em intervalos tão curtos?
Francisco Eliseu Aquino – A amplificação das mudanças climáticas, que intensifica os eventos e a sua própria recorrência, o El Niño contribui e ainda é preciso adicionar a essa interpretação que o ano de 2024 já é o mais quente comparativamente ao mesmo período de 2023. Portanto, já iniciamos um ano excepcionalmente quente, com os oceanos anomalamente quentes, mas um El Niño em arrefecimento. Então, a saída do El Niño ainda gera seus sinais e efeitos na atmosfera, porém, a mudança do clima se soma, amplificando – ou dando uma ênfase maior – aos fenômenos meteorológicos aqui vividos na última semana.
IHU – O RS está com 19 barragens em situação de risco. O que um rompimento dessas represas pode significar para as regiões já atingidas pela enchente?
Francisco Eliseu Aquino – É uma situação difícil porque temos solos e bacias hidrográficas repletos de água, inundados e extravasados, então, a contínua entrada de maior volume hídrico, seja pela chuva ou seja por essas barragens, caso não suportem as consecutivas inundações dos últimos meses, tornaria o tempo de inundação e de desastre para as famílias – mais de 17 mil pessoas em nosso Estado – ainda mais cruel [conversamos na manhã da sexta-feira, 03 de maio]. Porque estamos vendo a capacidade de atendimento [às vítimas] já no seu limite pela magnitude desse evento.
Enfatizo: em 1941, nós tivemos inundações e uma das áreas mais afetadas foi a região de Porto Alegre e da Grande Porto Alegre. Agora estamos vendo mais da metade dos munícipios do Estado e uma porção importante, em termos de adensamento populacional, que é entre Porto Alegre, o Vale do Sinos, entre Porto Alegre e o Vale do Taquari, entre Porto Alegre e essa região da Encosta da Serra, que estão densamente povoadas e com difícil mobilidade. Ainda acrescentaria a dificuldade do próprio voo de reconhecimento e atenção aos já desabrigados ainda ilhados. Então, o rompimento dessas barragens ou a contribuição maior desses volumes hídricos nessas bacias hidrográficas, dificulta mais ainda um cenário de desastre.
IHU – O lobby do agronegócio, tanto no Congresso quanto na Assembleia, vem, sistematicamente, há anos flexibilizando a legislação ambiental em favor da exportação de commodities sem valor agregado. Até que ponto essas tragédias são a “conta” desse descaso ambiental?
Francisco Eliseu Aquino – Elas têm uma conexão direta. A flexibilização ambiental de margens de rio, áreas úmidas e alagadas, banhados, a maior expansão sobre áreas de biomas e preservação, eles concorrem diretamente para amplificação da mudança climática e dos desastres.
Nesse momento em que nós falamos [manhã do dia 03 de maio], na balança comercial internacional, o preço de comodities como soja e farelo de soja já sente os impactos dessas inundações no Rio Grande do Sul – isso já existe internacionalmente. Então, estamos no caminho errado.
O desenvolvimento econômico e social do país e o desenvolvimento da agricultura de modo geral em nosso país, tem que ser compatibilizada com a preservação ambiental. Aliás, a preservação ambiental é internacionalmente vista, pelos cientistas do clima e ambientais, como a nossa melhor tecnologia e estratégia para ganhar qualidade de vida e resiliência para os impactos extremos das próximas décadas logo à frente.
IHU – Até que ponto é possível associar a tragédia que o RS tem vivido ao aquecimento global?
Francisco Eliseu Aquino – É direta. A mudança do clima força o ciclo hidrológico na atmosfera. Então, o que nós observamos na última semana – a manutenção de umidade vinda da Amazônia pelos rios voadores e o fortalecimento da corrente já com bloqueio atmosférico por conta da onda de calor – são condições frequentes e intensificadas de um planeta mais quente.
IHU – Um discurso recorrente por parte das autoridades é de que “é um evento de uma magnitude imprevista”, quase sempre usado como uma carta coringa para esses episódios. Como o senhor avalia as ações do poder público em relação a esses eventos climáticos extremos?
Francisco Eliseu Aquino – De modo geral, essa resposta não vale mais. Se imaginássemos a inundação de 1941, diríamos que uma recorrência seria algo de 10 mil anos; se olhássemos a inundação de setembro de 2023, de novo faríamos uma conta de 10 mil anos. Portanto, em menos de um ano as três inundações no Estado, as fortes tempestades, os vendavais – como, por exemplo, do início de janeiro deste ano – e as frentes de rajadas mostram que, sem dúvida, a frequência e a permanência desses eventos no Rio Grande do Sul, é para ficar para as próximas décadas. Portanto, estamos muito devagar no real enfrentamento versus a aceleração da mudança do clima.
IHU – Que tipos de ações podem ser feitas para mitigar o risco de catástrofes como está que o RS está vivendo?
Francisco Eliseu Aquino – Eu iniciaria enfatizando a relevância do movimento no governo no país e nos estados em modernizar e equipar a Defesa Civil. É nítida a diferença entre inundações e o número de mortes no ano passado para o evento desse ano, que tem maior magnitude, já que a população compreende um pouco melhor os alertas e a necessidade de buscar e visualizar melhor seus riscos.
Ao mesmo tempo, percebo que a organização dos agentes de Defesa Civil e Corpo de Bombeiros têm avançado – e bastante. Mas precisamos, sem dúvidas, de um investimento financeiro realmente concreto nestas ações.
Obviamente que a preservação ambiental teria que ser a nossa pauta primeira, associada a todo o nosso planejamento de alerta de desastres etc. E, friso: as mudanças climáticas crescerão e os eventos extremos crescerão. Portanto, a gente precisa melhorar a nossa convivência e a nossa resiliência com esse cenário.