Humanitas Unisinos, Alex Rocha | PMPA – Carlos Nobre (São Paulo, 1951) é uma espécie de astro do rock nos estudos sobre mudanças climáticas. Poucos meteorologistas têm tantos louros internacionais como ele.
Ao longo da sua vida, acumulou cargos relevantes, como chefe do Comitê Científico do Programa Internacional Geosfera Biosfera, conselheiro científico do Painel de Sustentabilidade da ONU, membro do Conselho Científico do Secretariado Geral da ONU ou membro da Royal Society Britânica. Em 2007, recebeu o Prêmio Nobel da Paz, juntamente com a equipa do Quarto Relatório de Avaliação do Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas (IPCC) das Nações Unidas.
Nobre exige mais financiamento dos países ricos para a conservação das florestas tropicais e é inflexível quanto à necessidade de parar a exploração do petróleo. “É impossível evitar um aumento de 1,5 grau da temperatura se continuarmos a explorar as áreas de combustíveis fósseis já exploradas”, afirma. “O crescimento de políticos populistas negacionistas” é uma das suas maiores preocupações.
Carlos Nobre coordenou, em 2023, o estudo intitulado “Nova Economia Amazônica” do World Resources Institute Brasil, que comprovou que a Amazônia gera mais valor econômico se permanecer em pé do que se for desmatada. O PIB da região aumentaria 67% com a exploração de produtos da bioeconomia (são plantados preservando a floresta tropical).
A entrevista foi realizada antes das trágicas chuvas no Rio Grande do Sul e finalizada depois delas. As inundações, as mais graves da história, causaram até agora a morte de 113 pessoas e o deslocamento de 337 mil pessoas.
Qual a relação entre as devastadoras enchentes no Rio Grande do Sul e o aquecimento global?
O aquecimento global está tornando os eventos extremos mais frequentes e provocando a ocorrência de novos eventos em locais sem precedentes. Por que chove mais? Há mais evaporação da água dos oceanos. À medida que a atmosfera é mais quente, ela armazena mais umidade. As fortes chuvas causam secas e ondas de calor em outros lugares. As enchentes no Rio Grande do Sul são causadas pelo bloqueio das ondas. A alta pressão permaneceu no sudeste e centro-oeste do Brasil, e a circulação de nuvens e chuva foi bloqueada.
O Rio Grande do Sul abriga um dos maiores números de negacionistas do Brasil – Carlos Nobre
O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), tem sido muito criticado atualmente porque seu governo vetou políticas ambientais. O que poderia ter sido evitado com políticas ambientais? O que pode ser feito para evitar tragédias futuras?
O Rio Grande do Sul abriga um dos maiores números de negacionistas do Brasil. Em 2019, Leite acertou com a Assembleia Legislativa uma série de medidas que enfraqueceram a proteção ambiental e a biodiversidade, todas com uma visão de expansão total da indústria agrícola. Se as margens dos rios fossem reflorestadas, o solo absorveria mais água. Nem toda a água da chuva iria para o rio, parte ficaria no solo.
Em entrevista recente, você afirmou que uma pessoa nascida na década de 60 experimentará cinco ou seis ondas de calor ao longo da vida. Um bebê nascido em 2020 experimentará trinta ondas de calor. O aquecimento global acelerou mais do que o esperado?
Esse estudo foi feito com dados de 2020. Os dados de 2023 e 2024 batem recordes de ondas de calor. Portanto, um bebê de 2020 enfrentará mais de trinta ondas de calor durante sua vida. A mídia divulga amplamente o impacto das chuvas torrenciais, mas a ciência mostra que o evento climático extremo que causa mais mortes é a onda de calor. A onda de calor de 2007 matou quinze mil pessoas na França e na Espanha, porque muito poucas pessoas tinham ar condicionado. O verão de 2022 matou 65 mil pessoas na Europa, principalmente mulheres com mais de oitenta anos. As cidades sofrem com a chamada ilha de calor urbana, o asfalto absorve muito calor e mantém a temperatura muito elevada, principalmente à noite.
A mídia divulga amplamente o impacto das chuvas torrenciais, mas a ciência mostra que o evento climático extremo que causa mais mortes é a onda de calor – Carlos Nobre
Como explicaria as consequências de um aumento de 1,5 grau na temperatura do planeta até 2050 para alguém no norte do mundo que vê o aquecimento climático como algo distante?
A Europa bateu números recordes de secas e ondas de calor nos últimos anos. Fortes chuvas na Alemanha mataram mais de 100 pessoas. Um megaincêndio devastou a Grécia. Extremos estão a acontecer em todo o mundo e também na Europa. Mesmo que não sejam afetados por furacões, os europeus não podem pensar que estão fora dos extremos.
Qual é a relação entre o desmatamento de florestas tropicais e eventos climáticos extremos?
O desmatamento tem ocorrido mais nas florestas tropicais há muitas décadas. O desmatamento é responsável por uma quantidade relativamente pequena de emissões de gases de efeito estufa, cerca de 12%. Mas no mundo a queima de combustíveis fósseis contribui com 70% das emissões. Portanto, não podemos dizer que o desmatamento esteja causando alterações climáticas. No Brasil, até 2022, o desmatamento contribuiu para 50% das emissões.
Deixe-me reformular a pergunta: qual a importância de manter a Amazônia em pé, para conservar a temperatura, a umidade e as chuvas do mundo?
A floresta amazônica recebe em média 2,2 ou 2,3 metros de chuva por ano. Absorve uma grande quantidade de carbono da atmosfera e despeja-o no solo e nas árvores, mais de 150 mil milhões de toneladas de carbono. Proteger a Amazônia é essencial para o planeta. A selva é muito eficiente na reciclagem de água. 55% do vapor d’água que vem do Oceano Atlântico retorna ao oceano através do Rio Amazonas. 45% vai pelo ar.
Os famosos rios voadores. Explique como funciona, por favor.
O vapor d’água entra na Amazônia, sobe, condensa, vira água líquida, gota de chuva. 75% da água é reciclada, principalmente graças à transpiração das folhas e à evaporação da água. A água então sobe e sai da floresta tropical para alimentar os sistemas pluviais fora da Amazônia, principalmente no centro-oeste do Brasil, sul da América do Sul, Uruguai, Paraguai e parte da Argentina.
O agronegócio em todo o mundo, incluindo a Espanha, é o setor econômico mais negacionista do mundo – Carlos Nobre
O agronegócio (agricultura extensiva) no Brasil e no sul do continente depende muito dessas chuvas. Por que esse setor é tão negacionista e não entende a importância de manter a Amazônia de pé?
O agronegócio em todo o mundo, incluindo a Espanha, é o setor econômico mais negacionista do mundo. 70% das emissões são provenientes do setor energético. Apostam numa transição energética lenta, mas não são negacionistas.
Tendo tido um presidente negacionista como o Bolsonaro, acho que não ajudou muito…
O crescimento de políticos populistas negacionistasé um risco enorme. Bolsonaro não é o único. Mileié uma negacionista. Trump é um super negacionista. Quando era presidente, retirou os Estados Unidos do Acordo de Paris. Não querem admitir os riscos das alterações climáticas e não querem implementar medidas. Trump já disse que, se vencer, autorizará a exploração de petróleo e gás natural. Durante o governo Bolsonaro, as emissões, o desmatamento e a degradação aumentaram muito. Bolsonaro apareceu em 2021 na Reserva Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, com garimpeiros ilegais. Deveria ter provocado um processo judicial, porque incentivar a extração mineral em reserva indígena é proibido pela Constituição.
Os povos indígenas do Brasil vivem um momento de máxima visibilidade. Chegou a hora de reconhecê-los como os grandes guardiões da selva e de trabalhar e aprender com eles?
Nunca tivemos o que estamos vivendo nos últimos anos, principalmente a partir de 2023, com o governo Lula, com a ministra Marina Silva (Meio Ambiente e Mudanças Climáticas), com o ministro Haddad (Economia), lançando a transição ecológica da economia brasileira. Os indígenas nunca tiveram tanta representatividade. O Brasil tem todas as condições para ser um dos líderes mundiais na proteção dos povos indígenas que mantêm os ecossistemas. É um desafio, nada fácil, porque o Congresso defende a continuidade da expansão agrícola em todos os biomas do Brasil.
É impossível evitar um aumento de um grau e meio de temperatura se continuarmos a explorar as áreas de combustíveis fósseis já exploradas – Carlos Nobre
O governo Lula acredita na ciência, conseguiu reduzir o desmatamento e reconheceu novas reservas indígenas. No entanto, quer continuar a explorar petróleo. Especificamente, abrir novos poços na foz do Rio Amazonas. Não é contraditório?
É impossível evitar um aumento de um grau e meio de temperatura se continuarmos a explorar as áreas de combustíveis fósseis já exploradas. Novas minas de carvão e poços de petróleo e gás natural não fazem sentido. Nem no Brasil nem no resto do mundo. O Brasil tem um enorme potencial em energia renovável, hidrelétrica, eólica e solar. Esses dois estão crescendo muito. O Brasil também poderia avançar rapidamente na eletrificação de veículos.
Após o Acordo de Paris, os países ricos comprometeram-se a financiar parte das medidas necessárias para evitar o aquecimento climático. No entanto, 60% são créditos e não doações. É suficiente ou os países ricos deveriam contribuir mais?
Não chegaram fundos em 2021, 2022, 2023. Este ano, talvez cheguem 100 mil milhões de dólares. Além disso, 60% são empréstimos para apoiar a transição energética dos países em desenvolvimento. O mínimo necessário seria de 700 bilhões de dólares. No Egito, em 2022, foi feito um fundo de 800 milhões. É muito pouco para o que é necessário. Os países ricos deveriam investir muito mais.
Por que o financiamento internacional é tão crucial para evitar o “ponto sem retorno” da Amazônia?
Lula defende em seus discursos, com razão, que os países ricos financiem países com florestas tropicais. Na COP28, o Brasil lançou o Projeto Arco de Restauração Florestal, para reflorestar 24 milhões de hectares até 2050. Custa 40 bilhões de dólares. É importante que os ricos ajudem. Também para criar uma infraestrutura sustentável para a Amazônia, transporte, energia. Por outro lado, o Fundo Amazônia do governo obteve uma doação de 14 bilhões de dólares, mas precisamos de 100 bilhões para reflorestar e criar uma nova bioeconomia com os produtos da biodiversidade.
Se continuarmos com uma economia tradicional na Amazônia, uma quantidade imensa será desmatada – Carlos Nobre
No ano passado você coordenou o relatório Nova Economia da Amazônia do World Resources Institute Brasil (WRI). Se o desmatamento da selva for evitado e a bioeconomia for comprometida, estima-se um aumento de 67% no PIB da região e um saldo positivo de 312 mil empregos na Amazônia brasileira…
Se continuarmos com uma economia tradicional na Amazônia, uma quantidade imensa será desmatada. Além disso, os produtos da biodiversidade gerariam uma economia maior e mais empregos do que a pecuária e a agricultura tradicionais, e não adicionamos créditos de carbono, que poderiam multiplicar por dois ou três o valor da floresta em pé. Além disso, os sistemas agroflorestais (que combinam a exploração de recursos e a floresta em pé) empregam 10 a 20 vezes mais pessoas do que a pecuária ou a soja.
Seu irmão Antônio Donato Nobre, no relatório O Futuro Climático da Amazônia, fala sobre o oceano verde, comparando a selva a um parque tecnológico. Qual a importância de construir narrativas para inventar uma nova história inspiradora e novos imaginários?
É um enorme desafio cultural e filosófico. Se conseguimos demonstrar que a agricultura e a pecuária regenerativas são mais produtivas, mais lucrativas, é um mistério cultural que o setor do agronegócio esteja em negação. O pecuarista quer expandir mais, dominar grandes áreas…
Há esperança?
Os jovens de todo o mundo estão muito mais preocupados com o futuro. A taxa de suicídio entre os jovens tem aumentado, porque eles estão muito preocupados com o futuro do planeta. Eles vão sofrer esse futuro e já estão sofrendo. Temos que trabalhar com eles na universidade, para formar futuros líderes, não só cientistas, mas também líderes empresariais desta nova economia sustentável. Eu sou otimista. Não basta fazer isso em um ano, mas talvez em uma ou duas décadas.