“Olha, um pedaço de cerâmica!”, exclama, apontando para um caco desgastado preso entre as pedras, provavelmente uma relíquia de uma civilização anterior. Não é a única. Agachando-se, Schöngart, cientista florestal do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), observa o leito do rio e as rochas a seus pés.
Bem abaixo do nível normal do rio para a época do ano, a pedra exibe rostos desenhados em tamanho natural, uma espécie de galeria arqueológica talhada durante uma grande seca há 1000 anos. Agora, eles estão expostos novamente por uma nova seca, a pior na história moderna da região.
Nos 4 meses anteriores, apenas alguns milímetros de chuva haviam caído na cidade de 2 milhões de habitantes, localizada na confluência dos rios Negro e Amazonas. Normalmente, Manaus recebe cerca de meio metro de chuva durante o mesmo período. O rio Amazonas começou a baixar constantemente em junho, como acontece na maioria dos anos durante a estação seca, mas, em meados de outubro, o medidor do porto registrou o nível mais baixo observado desde que os registros começaram, em 1902.
Cargueiros vindos do oceano Atlântico — a principal fonte de suprimentos da cidade — foram bloqueados por bancos de areia. As fábricas colocaram os trabalhadores de licença.
Para piorar, a seca coincidiu com uma série de ondas de calor prolongadas. Em setembro e outubro, as condições meteorológicas no estado do Amazonas continuavam devastadoras e as temperaturas atingiam picos de 39ºC, 6 graus acima do padrão histórico. Áreas secas da floresta, incendiadas por fazendeiros, envolveram a cidade numa espessa e sufocante nuvem de fumaça. Então, no episódio mais inesperado da estação, uma tempestade de areia varreu Manaus, bloqueando grande parte da luz solar em algumas regiões.
Seca, poeira e calor, no entanto, são somente a metade das mudanças em curso no coração da maior floresta úmida do planeta. As pesquisas de Schöngart e seus colaboradores sobre o rio Amazonas apontam que, por décadas, ao mesmo tempo que o nível das águas na estação seca tem sido cada vez mais baixo, a estação chuvosa está cada vez mais volumosa. Manaus tem experimentado inundações severas mais frequentes nos anos recentes devido às chuvas intensas ao longo de toda a bacia Amazônica, forçando as autoridades a construir passarelas temporárias de madeira sobre as ruas da histórica avenida Beira-Mar.
Schöngart e outros pesquisadores acreditam que tais mudanças tendem a ser intensificadas à medida que o clima global passe a atingir temperaturas mais altas. A seca atual oferece um vislumbre sombrio dessas mudanças, com mortandade de peixes e botos, e ameaça a segurança alimentar e a própria sobrevivência de muitas comunidades ribeirinhas.
Se a combinação de níveis de cheia e vazante cada vez mais extremos se tornar a regra, as ramificações desse novo regime podem se estender por toda a bacia Amazônica e além dela, ameaçando a existência da floresta – que concentra grande parte da biodiversidade do planeta, influencia o clima regional e global, além de sustentar milhões de pessoas.
“Estamos presenciando mudanças massivas no ciclo hidrológico” da bacia Amazônica, Schöngart pontua. A questão é, como ele diz, se o ecossistema e as pessoas podem se adaptar a isso.
Golfinhos sofrem com a seca
Tentando ganhar do ronco do motor de popa, Ayan Fleischmann grita ordens ao barqueiro de um bote que navega pelas águas do lago Tefé, em outubro de 2023. Fleischmann é hidrologista no Instituto Mamirauá, em Tefé, no Amazonas. A cidade de 70.000 habitantes fica à beira do lago e o pesquisador está monitorando as condições extremas na Amazônia central, 600 quilômetros rio acima de Manaus, em uma das regiões mais afetadas pela seca.
Navegamos até o que parece ser o resquício de uma cerca — um poste de madeira torto e esbranquiçado, sobressaindo acima da superfície do lago. Poucos suspeitavam que ele guardava uma estação de monitoramento de temperatura. É intencional, diz Fleischmann. “Colocamos nesse tipo de poste para que ninguém ache que é importante”, diz ele, sorrindo.
Ele agarra o poste sem graça e puxa um registrador de dados do tamanho de um relógio de pulso, amarrado a um pedaço de barbante. A temperatura média da água para esta época do ano é de 30°C, mas o sensor recentemente registrou um pico de 39,1°C. Fleischmann diz que as partes mais rasas do lago podem ter atingido 41°C no final de setembro. O ar em outubro também estava quente, cerca de 1,5°C acima da média. Ao mesmo tempo, a seca reduziu o lago; até o final do mês, a superfície do lago Tefé ainda iria diminuir 6,5 metros abaixo da média anual. Combinados, o nível extremamente baixo d’ água e a alta temperatura do ar cobraram um preço mortal à vida da floresta.
Não muito longe do sensor de Fleischmann, quatro figuras agachadas deslizam ao longo da margem do lago Tefé em uma voadeira, com os rostos cobertos por máscaras cirúrgicas. Encalham o barco em um banco de lama e carregam para a terra um pacote envolto em uma lona azul. Ao desenrolá-lo em uma tenda que serve como uma sala cirúrgica improvisada na margem do rio, um golfinho morto cai sobre a mesa de dissecação de metal. O cheiro de carne podre exala do cadáver descascado e descolorido. Meia dúzia de pessoas que relaxavam à sombra da barraca se apressam para vestir trajes Tyvek, luvas de borracha e máscaras.
Uma delas, Mariana Lobato, pesquisadora no Mamirauá, diz que o mamífero é uma fêmea de tucuxi (Sotalia fluviatilis), a menor das duas espécies de golfinhos de água doce que vivem na região. Provavelmente, está em decomposição há um ou dois dias, ela diz. Lobato pega um bisturi e corta o abdômen do animal. “Estamos medindo a gordura”, diz, apontando para uma camada castanha tão grossa quanto seu polegar. Abundante, indica que este tucuxi não morreu de fome. Ela e seus colegas cortam mais fundo, retirando pedaços do pulmão, cérebro e outros órgãos para estudos posteriores.
Os corpos dos golfinhos começaram a aparecer no final de setembro, lembra a oceanógrafa Miriam Marmontel, que lidera o grupo de estudos de mamíferos aquáticos do Mamirauá. A partir de informações dos barqueiros, a equipe retirou 19 carcaças do lago. Nos dias seguintes, Marmontel diz, seus trabalhadores descobriram golfinhos “em agonia, girando no mesmo lugar e incapazes de mergulhar”.
Eles morreram rápido.
Em 28 de setembro, o dia em que o sensor de Fleischmann registrou o recorde de calor, foram descobertos mais 70 corpos. Ao todo, foram coletados mais de 200 botos mortos, incluindo as duas espécies locais — cerca de 15% da população do lago — no período de algumas semanas. “Foi algo que nunca poderíamos esperar. Realmente foi um golpe duro”, diz Marmontel.
Foi algo que nunca
poderíamos esperar.
Realmente foi um golpe duro.Miriam Marmontel, oceanógrafa
Os recordes de temperatura na água eram os suspeitos mais óbvios da calamidade, mas Marmontel e sua equipe ainda assim conduziram mais de 100 necropsias para tentar eliminar outras possibilidades. Nenhuma evidência de doenças infecciosas ou mesmo de uma toxina foi encontrada. “Acreditamos que o maior culpado aqui é realmente a mudança climática”. Isso, segundo Marmontel, é preocupante, já que seria a única causa sem uma solução local.
No mesmo dia infernal de setembro, cardumes de peixes mortos cobriram largas extensões da superfície do lago Tefé – provavelmente vítimas do calor intenso. Um time de pesquisadores do INPA demonstrou que peixes amazônicos não toleram temperaturas acima de 35 a 37ºC. “Qualquer coisa acima disso é inadmissível”, pontua Alexandre Pucci Cercos, líder do grupo de pesquisa em ecologia e biologia de peixes do Instituto Mamirauá. “Um grau a mais pode não parecer muito, mas faz uma enorme diferença. Hoje, o lago Tefé tem dezenas de espécies de peixe. Mas, como já foi dito, se essas condições desfavoráveis se tornam mais frequentes, algumas espécies migrarão e outras serão extintas”.
Um grau a mais pode não parecer muito, mas faz uma enorme diferença. Hoje, o lago Tefé tem dezenas de espécies de peixe. Mas, como já foi dito, se essas condições desfavoráveis se tornam mais frequentes, algumas espécies migrarão e outras serão extintas.
Alexandre Pucci Cercos, pesquisador Instituto Mamirauá
Um problema que não é isolado
Manaus e Tefé não são anomalias. O nível dos rios da bacia Amazônica caiu dramaticamente na maioria dos lugares e secou completamente em setembro e outubro, diz José Marengo, cientista do clima no Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais (Cemaden). O calor abafou 60% da floresta, com elevação de temperatura oscilando entre 2 e 5ºC acima das médias históricas.
As causas imediatas, segundo os cientistas, estão, no entanto, a milhares de quilômetros dali, nas correntes de água anormalmente aquecidas, nos oceanos Pacífico e Atlântico.Uma influência bem estabelecida sobre a temperatura e a precipitação na Amazônia é a Oscilação Sul-El Niño, uma flutuação cíclica nas temperaturas superficiais no oceano Pacífico equatorial central e oriental. Em sua fase quente, o El Niño esquenta essas regiões mais do que o normal, criando zonas de baixa pressão na atmosfera superior, que desviam o ar úmido responsável pela chuva de seus caminhos normais — e, frequentemente, para longe da Amazônia. O El Niño, que começou em 2023, apareceu de forma incomum e é previsto para ser um dos mais fortes já registrados até o seu término.
Outro fator que influenciou a seca do ano passado foi o aquecimento atípico no Atlântico, logo ao norte da Linha do Equador, que, assim como o El Niño, desvia o ar úmido de sua rota e tem sido associado a secas anteriores na Amazônia. O Relatório de Avaliação da Amazônia 2021, uma avaliação enciclopédica da população, ecologia e clima da Amazônia, aponta que, das 15 megassecas registradas entre 1906 e 2021, seis coincidiram com o El Niño e três com as águas quentes do Atlântico Tropical Norte. Adicionando a seca de 2023, todas as quatro secas deste século ocorreram quando ambas as regiões oceânicas estavam aquecidas.
A mudança climática é a principal suspeita pelas alterações observadas nas condições oceânicas que propiciam as secas, embora os mecanismos subjacentes ao seu papel não sejam claros. Algumas pesquisas sugerem que o aquecimento global pode estar aumentando a intensidade e a frequência dos El Niños. Além disso, o aumento mais amplo nas temperaturas oceânicas causado pelo aquecimento global também pode estar contribuindo, criando um contexto para áreas anômalas de água mais quente no Atlântico e no Pacífico. As temperaturas médias da superfície do mar global têm aumentado constantemente por mais de um século, mas, em 2023, a média global quebrou recordes anteriores em todos os meses a partir de abril, uma tendência que continuou neste ano.
Um experimento de modelagem divulgado em janeiro pela World Weather Attribution, uma colaboração internacional de cientistas climáticos, descobriu que as mudanças climáticas aumentaram em 10 vezes a probabilidade de precipitação observada na Bacia Amazônica em 2023. Seu impacto foi ainda maior na probabilidade de uma seca agrícola, na qual a baixa precipitação e as altas temperaturas combinam-se para ressecar o solo, estressando as plantações e as florestas ao mesmo tempo. A modelagem concluiu que as mudanças climáticas aumentaram em 30 vezes a probabilidade de uma seca agrícola tão profunda quanto a de 2023.
De maneira mais simples, a seca teria sido improvável se as mudanças climáticas não tivessem aquecido o planeta. Marengo ainda não está pronto para dizer que a seca foi causada pelas mudanças climáticas, mas ele a vê como uma “amostra” do que está por vir. “Parece que agora estamos olhando para algumas dessas coisas que poderiam acontecer nas próximas décadas.”, diz.
A mudança climática também é uma das responsáveis pelas chuvas extremas que têm ocorrido durante as estações chuvosas. Das 18 “emergências” declaradas por enchentes em Manaus desde 1902, metade, incluindo as quatro maiores, ocorreram desde 2000. “As enchentes recentes não apenas ocorrem mais frequentemente, mas também se tornaram mais severas”, escreveram Schöngart e colegas em um artigo de 2018 na revista Science Advances.
Independentemente de suas causas exatas, as enchentes estão causando estragos. Em junho de 2021, o rio atingiu um nível histórico altíssimo em Manaus, inundando dezenas de milhares de casas e levando as autoridades a construir 9 quilômetros de passarelas sobre as ruas. Moradores próximos ao lago Tefé dizem que as estacas sobre as quais suas casas são construídas nem sempre são altas o suficiente para mantê-las secas durante as enchentes. Durante estações chuvosas atípicas, algumas famílias instalam pisos temporários, 1 metro ou mais acima do original, e entram pelas janelas em vez da porta da frente.
As florestas também podem estar em risco. Algumas árvores nas planícies alagadas da Amazônia e seus afluentes estão adaptadas para suportar até 10 meses de inundação, muito mais do que as árvores normais conseguem aguentar. No entanto, até essas árvores têm seus limites. Em um estudo de 2020, Schöngart e colegas documentaram um padrão de mortalidade arbórea coincidindo com anos de inundações extremas no Parque Nacional do Jaú, no Amazonas, concluindo que os alagamentos mais intensos das últimas décadas já estão danificando essas árvores.
No futuro, níveis muito altos de água também podem ameaçar algumas espécies da fauna amazônica, diz Rafael Rabelo, coordenador de pesquisa no Instituto Mamirauá. Ele está particularmente preocupado com o macaco-de-cheiro-preto (Saimiri vanzolinii), que vive apenas perto de Tefé em 800 quilômetros quadrados de floresta sazonalmente inundada, chamada igapó. Um estudo de modelagem está explorando se as águas de enchente mais altas esperadas no futuro prejudicarão o igapó, o que poderia colocar os próprios primatas em risco.
Insegurança alimentar
Se esta seca continuar, nossa preocupação é ficar sem comida
Márcio da Silva Santos, o tuxaua, ou chefe, da aldeia indígena de Betel.
Santos resmunga ante o peso de uma canoa de madeira feita à mão, que ele e outros três membros do povo Kambeba se revezam carregando, dois de cada vez, ladeira abaixo.
Quando chegam à água, eles posicionam a canoa nos banquinhos de uma voadeira, atravessam o rio Amazonas, depois levantam a canoa novamente sobre os ombros e a transportam através da floresta. Finalmente, chegam a um longo e estreito corpo d’água, o lago Catuano, um antigo caminho deixado para trás quando o Amazonas mudou de curso há muito tempo. Lançam redes e linhas de pesca, na esperança de capturar cestos cheios de pacu, piranha, curimatã e outros peixes.
Os golfinhos implacavelmente rasgam as redes e roubam a pesca, a menos que sejam constantemente afugentados — ou repelidos com um porrete que os pescadores carregam para esse fim.
Não é apenas a pesca que se tornou mais difícil. O plantio e a colheita da mandioca, carboidrato básico e parte da cultura de subsistência para muitos dos povos indígenas da região, também foram interrompidos. Em Betel, o calor nesta temporada é tão intenso que os agricultores não conseguem trabalhar nos campos depois das 9 horas da manhã. Santos diz que os pequenos riachos próximos, que fornecem a água usada para moer a raiz da mandioca e transformá-la em farinha, secaram, forçando os moradores a esperar pelo fim da seca para processar o alimento.
No entanto, o que mais preocupa Santos é um incêndio florestal sem precedentes que ocorreu em uma noite em setembro. Como de costume, os produtores indígenas preparavam um campo de mandioca, cortando os talos remanescentes da colheita anterior e deixando-os secar antes de atear fogo. Esse método tradicional de corte e queima elimina a vegetação descartada, mata as ervas daninhas e produz cinzas ricas em nutrientes.
Normalmente, essas queimadas se extinguem onde o campo preparado termina e a floresta primária circundante começa. Mas desta vez as chamas continuaram. Primeiro, elas se espalharam para um campo vizinho, destruindo um trecho de mudas de açaí que eventualmente produziriam frutos para consumo local e venda para o mercado internacional. Depois, pela primeira vez desde que a cidade foi fundada há 53 anos, o fogo escapou para a floresta nativa. “Nunca tínhamos visto fogo assim”, diz Santos. “Não conseguimos explicar”.
A poucos minutos de barco pelo Amazonas, partindo de Betel, outra comunidade indígena, Porto Praia, enfrentou uma mistura diferente de problemas. Uma ilha na frente da cidade cria um canal de um quilômetro de largura que separa a aldeia do leito principal do Amazonas. Em setembro, este canal secou completamente, revelando uma extensão de dunas de areia tão altas quanto uma pessoa. Fleischmann chama essas dunas de “Saara do Amazonas”.
Estações secas e úmidas mais exacerbadas estão contribuindo para produzir essas dunas, ele diz. Alimentadas pelas chuvas extremas da estação úmida nas cabeceiras, as enchentes estão escavando os leitos dos rios com mais força, erodindo as margens rio acima e carregando cargas mais pesadas de sedimentos que são depositados onde a corrente diminui, como perto de Porto Praia.
Logo depois, estas dunas são expostas pela seca. Na cidade, elas apareceram pela primeira vez durante a estação seca de 2022, mas foi com a seca de 2023 que elas tornaram a área ribeirinha isolada pela primeira vez.
A única escola de Porto Praia fechou porque a maioria de seus professores viaja de Tefé. Os moradores também passaram a pescar à noite, pois transportar equipamentos e cestas de peixe pelas dunas até o lago preferido durante o calor do dia é insuportável. “É difícil pescar durante o dia hoje em dia por causa do calor”, diz Anilton Bras da Silva, chefe de Porto Praia. “Em secas passadas, nós conseguimos nos virar.”
Previsões nada otimistas
Bruce Forsberg, um ecologista que estuda a Amazônia há mais de quatro décadas, diz que Porto Praia e Betel provavelmente passarão por condições climáticas piores. Ele dirige o Experimento de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera, uma colaboração internacional de longa duração focada nas ligações entre a floresta amazônica e o clima global. Forsberg e uma equipe de cientistas brasileiros e americanos modelaram como o aquecimento devido ao contínuo aumento das emissões de combustíveis fósseis afetaria os fluxos dos rios.
Em um grande monitor em seu escritório em Manaus, ele exibe mapas da região, com os rios codificados por cores para indicar as mudanças projetadas no fluxo de água para as últimas três décadas deste século. Um mapa da estação úmida mostra a maioria dos afluentes da Amazônia como linhas sinuosas em azul escuro e verde-azulado, indicando a previsão do modelo de que quase todas as cabeceiras da Amazônia nos Andes despejarão de 20% a 50% mais água até o final do século. O despejo na estação úmida no curso principal da própria Amazônia aumentará em até 20% ao longo da maior parte de seu comprimento, sugerindo inundações graves em Manaus e grande parte do restante da região.
Em contraste, tons avermelhados colorem os rios em um mapa que mostra os fluxos na estação seca. De acordo com o modelo, a descarga de água de cada rio principal na bacia diminuirá mais de 20% ao longo da maior parte de seus comprimentos. O nível de água mais baixo, na maior parte do rio Xingu, diminuirá mais de 50%. Isso poderia subverter a lógica financeira para o recém concluído complexo de Belo Monte, uma das maiores usinas hidrelétricas do mundo, diz Forsberg. A equipe publicou esses resultados de modelagem na revista Climatic Change em 2016, e Forsberg diz que eventos como a seca do ano passado sugerem que o padrão básico que eles previram está começando a ocorrer agora.
Forsberg diz que eventos extremos semelhantes provavelmente afetarão o sul do Brasil e outras partes da América do Sul, porque as condições na Bacia Amazônica influenciam os padrões de chuva por milhares de quilômetros ao redor. Um artigo de 2019 no Journal of Climate estimou que “rios voadores” de umidade da Amazônia contribuem com 16% da chuva na Bacia do Rio da Prata, uma das maiores bacias hidrográficas do mundo, estendendo-se da borda sul da Bacia Amazônica por mais de 2000 quilômetros até Buenos Aires, Argentina. Esses fluxos aéreos estão agora em perigo, diz Forsberg, o que poderia encolher rios, secar plantações e prejudicar hidrelétricas das quais milhões de pessoas dependem. “Isso terá efeitos desastrosos… que vão se espalhar por toda a América do Sul.”
Antes de deixar o Brasil, Santos, o tuxaua de Betel, me convidou para uma refeição. Ele acendeu uma fogueira e espetou um jaraqui, um peixe do tamanho de um prato de jantar e fino como a minha palma, em um galho verde fino. Enquanto ele assava o alimento sobre a brasa, minha intérprete, Diana Mayra Köhler, disse: “Comeu jaraqui, não sai mais daqui”, um ditado local.
Antes, Santos podia contar com a Amazônia para fornecer bastante jaraqui e outras iguarias. Agora, ele teme que as mudanças que estão assolando a região possam desencadear uma competição desastrosa pelos recursos. Ele está disposto a evitar a pesca no rio para ajudar os golfinhos a sobreviverem.
“Não os perturbamos para que eles não tenham que sofrer mais”. Mas ele está preocupado que a intensificação da pesca no fino lago Catuano possa colocar Betel em conflito com outros vilarejos, que também às vezes dependem dele. “Esta é uma situação delicada para nós”.
O mesmo pode ser dito do grande rio que passa pela aldeia e da floresta ao redor.
Fotos: Dado Galdieri/Hilaea Media
Vídeos: Dado Galdieri e Patrick Vanier/Hilaea Media
Esta reportagem é uma versão da história publicada originalmente em inglês na revista Science, produzida com apoio de uma bolsa do Pulitzer Center.