Os 8 grupos mais privilegiados do serviço público no Brasil, segundo novo livro

Os 8 grupos mais privilegiados do serviço público no Brasil, segundo novo livro

BBC, por Thais Carrança – No ano passado, 93% dos juízes brasileiros ganharam mais por mês do que os salários dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) – de R$ 39,3 mil até março de 2023 e depois reajustado para R$ 41,7 mil, valor que pela Constituição deveria ser o teto do funcionalismo.

Até 2026, os fiscais da Receita Federal devem ganhar mais de R$ 11 mil por mês para além de seus salários na forma de um “bônus de eficiência”, cujo pagamento independe do desempenho individual de cada auditor fiscal.

Com isso, a categoria poderá receber a partir daquele ano vencimentos de mais de R$ 40 mil, somando salário e bônus.

Os titulares de cartórios são a categoria profissional com renda mais alta do país – uma média de R$ 142 mil por mês, segundo dados do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) de 2022.

Mas, no Distrito Federal, um titular de cartório – cargo provido por concurso público – chega a ganhar em média meio milhão de reais mensais.

Como essas e outras categorias da elite do serviço público conquistaram essas remunerações exorbitantes que, em última instância, são financiadas pelo bolso de todos nós – seja através do pagamento de impostos ou do pagamento pela prestação de serviços, no caso dos cartórios?

É o que responde o mestre em economia e doutor em direito Bruno Carazza, em seu novo livro O país dos privilégios – Volume 1: Os novos e velhos donos do poder, lançado pela Companhia das Letras na terça-feira (25/6)

“Temos esse modo de funcionamento do Estado brasileiro, que permite que alguns grupos muito bem organizados, com poder de pressão, muito bem articulados com as esferas de poder – no Executivo, no Legislativo e no Judiciário –, consigam extrair do Estado uma série de benefícios”, diz Carazza, em entrevista à BBC News Brasil.

“É por isso que eu concebi essa obra com três volumes, porque não é algo restrito às carreiras públicas do funcionalismo. É algo também muito bem explorado pelo setor empresarial e pelas classes mais altas – os ricos e os super ricos“, diz o professor da Fundação Dom Cabral, já antecipando os temas de seus próximos volumes, previstos para serem lançados respectivamente em 2025 e 2026.

“A meu ver, isso explica muito do nosso atraso, da nossa desigualdade de renda, porque todos esses privilégios são acessíveis a um grupo restrito da sociedade e que acaba concentrando boa parte da renda. E são benefícios que se perpetuam no tempo”, acrescenta Carazza.

Desigualdade no funcionalismo

No primeiro volume de sua trilogia, dedicado aos privilégios no setor público, o pesquisador deixa claro que o problema do Brasil não é de excesso de servidores.

Apesar de o país contar com 10,8 milhões de vínculos formais de trabalho no setor público em 2021, ante 4,8 milhões em 1985 (num crescimento de 124% em 36 anos), o contingente de servidores públicos brasileiros não destoa da média internacional, demonstra Carazza.

Entre os membros da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), por exemplo, os servidores públicos representavam em média 17,9% da população economicamente ativa em 2020, cita o analista.

No Brasil, considerando todos os níveis da federação e incluindo os militares, o setor público empregava 12% da força de trabalho do país naquele ano.

Ou seja, menos do que a média dos países ricos e menos até do que os Estados Unidos (14,9%), considerado um país menos estatizante.

No entanto, analisando o peso da remuneração dos servidores na economia, a história é outra.

O Brasil gastava 13% do seu Produto Interno Bruto (PIB) em 2019 com a folha de pagamentos do funcionalismo, acima de países ricos como Alemanha (7,6%), Reino Unido (8,9%), Itália (9,3%) e França (11,8%) e muito acima de vizinhos latino-americanos como México (4,7%) e Chile (7,2%).

Carazza também observa que, embora o setor público pague em média salários mais altos do que o setor privado, o problema mais grave está no governo federal, onde essa diferença chega a 93,4%, comparando trabalhadores de mesmo gênero, raça, idade, escolaridade, experiência e ocupação nos dois setores.

Nos Estados, o diferencial de salários em favor dos trabalhadores do setor público é de 27,9%.

Já nos municípios – que empregam uma maioria de professores, assistentes sociais, médicos e enfermeiros da saúde pública, atendentes de repartição pública e outros profissionais que atuam no atendimento direto à população – o diferencial chega a ser negativo em -2,46%, conforme estudo dos pesquisadores Gabriel Tenoury e Naercio Menezes Filho, do Insper, citado no livro.

Essas desigualdades internas ao funcionalismo também ficam evidentes quando se analisa a mediana de rendimentos mensais no setor público, nos diferentes poderes e níveis federativos.

Gráfico de barras mostra mediana de rendimentos mensais no setor público brasileiro, por poder da república e nível federativo, em 2019

Qual reforma administrativa

Carazza destaca que reconhecer essas diferenças entre os servidores públicos é fundamental para pensar qual é a reforma administrativa necessária para o país.

Discussões sobre essa reforma existem desde a Constituinte, lembra o pesquisador.

Depois disso, houve uma reforma no governo Fernando Henrique Cardoso, que foi aprovada, porém, muitos pontos não foram regulamentados. Desde então, não houve nenhuma proposta robusta aprovada pelo Congresso, diz o professor.

Segundo ele, a proposta de reforma apresentada pelo governo de Jair Bolsonaro (PEC 32/2020), ainda que volta e meia seja lembrada pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), é considerada por especialistas como uma reforma muito ruim.

“Temos um ‘não debate’ no Brasil a respeito da reforma administrativa”, avalia o professor da Fundação Dom Cabral.

“É um tema discutido de uma forma muito rasa no país. De um lado, temos aqueles radicais de direita, que entendem que o Estado deve ser o mínimo possível – o que não faz sentido, pois, pelos desafios que temos no Brasil, o Estado é muito necessário”, avalia o pesquisador.

“De outro, temos várias pessoas na esquerda que têm uma visão de que não se deve mudar nada na forma como o Estado está estruturado hoje. Como se o Estado não tivesse todas essas distorções, que geram uma má prestação de serviços públicos e uma concentração de renda, agenda que a esquerda se posiciona corretamente contra.”

Protesto contra a PEC 32, proposta de reforma administrativa apresentada pelo Governo Bolsonaro em 2020

CRÉDITO, FÓRUM DOS SERVIDORES ESTADUAIS DE SANTA CATARINA

Legenda da foto, Protesto contra a PEC 32, proposta de reforma administrativa apresentada pelo Governo Bolsonaro em 2020

Carazza avalia que, apesar das visões radicais de ambos os lados, que interditam um debate necessário, é possível encontrar pontos comuns para uma reforma administrativa.

No livro, ele analisa duas propostas de reforma, uma elaborada por Armínio Fraga, Ana Carla Abrão e Carlos Ari Sundfeld, especialistas considerados mais ligados ao mercado financeiro; e outra publicada pelo Fórum Nacional Permanente de Carreiras Típicas de Estado (Fonacate), organização formada por 37 associações e sindicatos, que representam mais de 200 mil servidores públicos.

“Quando você vê as propostas apresentadas por esses dois grupos, você vê que há muito mais pontos em comum, do que discordâncias”, observa o pesquisador.

Entre esses pontos em comum, que podem servir de norte para uma reforma consensual, ele cita:

  • A necessidade de uma redução na quantidade atual de carreiras do serviço público;
  • A estruturação das carreiras no serviço público para que elas passem a ter uma remuneração inicial mais baixa e uma carreira longa, em que os profissionais progridam mediante avaliações individuais de desempenho;
  • A regulamentação de uma avaliação de desempenho no serviço público;
  • E a recuperação da autoridade do teto de remuneração no serviço público, acabando com penduricalhos que geram os super salários do Judiciário, Legislativo e Executivo.

Além de pesquisador e professor universitário, Carazza é também ele mesmo funcionário público de carreira, com passagem pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e por diversos órgãos do Ministério da Fazenda.

No entanto, está atualmente licenciado – o que ele também considera uma forma de privilégio.

“Por um bom tempo, eu acreditei que muitos dos privilégios que eu tenho, eram fruto do meu mérito”, observa o pesquisador.

Ele cita, entre o que considera como privilégios, as universidades públicas onde fez graduação e pós-graduação de forma gratuita; os alto salários que recebeu como servidor público; estar licenciado do setor público, mas com a vaga assegurada se desejar voltar, um benefício que não existe no setor privado; além do fato de receber a maior parte de seus rendimentos atualmente como pessoa jurídica, não estando sujeito à tributação de lucros e dividendos.

“Ao longo da minha trajetória, não só no serviço público, mas desde que me licenciei para atuar com pesquisa, para mim fica cada vez mais claro que, para termos um país mais próspero, justo e sustentável, precisamos repensar esse modelo de distribuição de privilégios para grupos isolados da sociedade”, diz Carazza.

“Meu propósito neste livro não foi atacar as pessoas ou as empresas que se beneficiam dessa rede de privilégios, mas convidar as pessoas a repensarem esse modelo.”

Para repensar nosso modelo de distribuição de benesses, confira oito grupos privilegiados no Brasil, de acordo com o novo livro de Bruno Carazza.

1. Magistrados

“Talvez o Poder Judiciário seja a categoria em que essa questão dos privilégios esteja mais visível hoje em dia”, observa o economista.

Ele lembra que o Judiciário tem autonomia funcional e administrativa e que, por isso, não está sujeito a todos os rigores do ajuste fiscal, como está sujeito o Poder Executivo, por exemplo.

Além disso, por se tratarem de juízes, muitas vezes eles arbitram sobre os próprios benefícios.

Estátua da Justiça na Praça dos Três Poderes, em Brasília

CRÉDITO, FABIO RODRIGUES-POZZEBOM/AGÊNCIA BRASIL

Legenda da foto, Pelo menos 1 mil juízes ganharam mais de R$ 1 milhão no acumulado do ano em 2023, equivalente a uma renda de R$ 83 mil por mês

Isso ajuda a explicar como 93% dos juízes, desembargadores e ministros de tribunais superiores brasileiros tiveram rendimento médio mensal superior aos ministros do STF em 2023, já contabilizados todos os descontos legais.

E por que pelo menos 1.002 magistrados ganharam mais de R$ 1 milhão no acumulado daquele ano, equivalente a uma renda de R$ 83 mil por mês.

A explicação é simples: os salários do Judiciário são inflados pelos chamados “penduricalhos”, uma série de adicionais, auxílios, bonificações e outros pagamentos que turbinam os contracheques dos magistrados Brasil afora.

No Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, por exemplo, em 2023, um magistrado tinha direito a:

  • Auxílio-creche, para reembolsar as mensalidade pagas pela educação infantil de filhos ou enteados de seis meses a sete anos de idade;
  • Auxílio-educação, para cobrir as despesas com educação de dependentes legais até 24 anos, além de cursos de pós-graduação dos próprios magistrado – o valor de cada um desses auxílios era de R$ 1,5 mil por dependente, limitado a três benefícios por servidor;
  • Auxílio-alimentação de R$ 1,6 mil mensais;
  • Indenização de transporte de até R$ 1,5 mil mensais.

Outro exemplo de benefício da categoria são as férias de 60 dias anuais a que os magistrados têm direito, para compensar sua carga de trabalho supostamente exaustiva – o dobro do previsto pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

Acontece que boa parte dos juízes prefere não tirar essas férias adicionais, optando por converter os dias extras de férias em dinheiro.

Um único desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, por exemplo, chegou a receber R$ 649 mil referentes a férias não usufruídas entre 2017 e 2024, isso para além de seus vencimentos básicos, de R$ 37,6 mil.

“Por causa desses benefícios que são criados pelo próprio Judiciário, sem controle dos outros poderes, esses juízes, às vezes de primeira instância, acabam ganhando muito mais do que um ministro do Supremo, o que não faz sentido”, conclui Carazza.

2. Membros do Ministério Público

Segundo o pesquisador, membros do Judiciário e do Ministério Público (MP), as duas carreiras jurídicas de elite do Brasil, competem entre si para ver quem turbina mais seus contracheques.

Assim, sempre que uma categoria conquista um “penduricalho”, a outra recorre ao STF para pedir a equiparação.

Com isso, os vencimentos das duas carreiras vão se afastando cada vez mais do teto do serviço público e do padrão salarial da sociedade brasileira.

Mas o Ministério Público é ainda mais opaco do que a Justiça quanto à publicação dos rendimentos de seus membros, destaca o analista.

Fachada da Procuradoria-Geral da República

CRÉDITO, JOSÉ CRUZ/AGÊNCIA BRASIL

Legenda da foto, 92% dos membros do Ministério Público recebiam acima do teto do funcionalismo em 2023

“É até uma incoerência, porque o Ministério Público é o órgão que deveria fiscalizar a transparência dos outros [órgãos do poder público]”, aponta Carazza. “Ele fiscaliza a transparência dos outros, mas ele próprio não publica amplamente seus dados.”

Mesmo com essa falta de transparência, o pesquisador conseguiu estimar, com base nos dados disponíveis de quatro MPs da União e de 13 MPs estaduais, que 92% dos membros do Ministério Público recebiam acima do teto do funcionalismo em 2023.

E pelo menos 1,2 mil membros do MP ganharam, em média, mais de R$ 50 mil por mês naquele ano, com os salários turbinados por indenizações, auxílios, gratificações, pagamentos retroativos e aditivos de todo tipo.

3. ‘Carreiras típicas de Estado’

Na verdade, essa é uma categoria que não existe formalmente, esclarece Carazza.

Foi uma nomenclatura que surgiu na época da reforma do Estado proposta pelo governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002).

Seriam algumas carreiras que teriam estabilidade contra demissões e uma série de proteções, frente à perspectiva de que funções mais operacionais do serviço público pudessem ser exercidas por empregados celetistas, sem garantia de estabilidade.

Nesse grupo informal estão diplomatas, auditores fiscais da Receita Federal e do Trabalho, advogados da União, procuradores da Fazenda Nacional e policiais federais, assim como analistas do Banco Central, do Tesouro Nacional, do Orçamento e da CGU, além de gestores governamentais e analistas de comércio exterior – para citar apenas as carreiras principais.

Agente da Polícia Federal com o nome da instituição nas costas da camisa

CRÉDITO, DIVULGAÇÃO/POLÍCIA FEDERAL

Legenda da foto, ‘Carreiras típicas de Estado’, como a Polícia Federal, têm feito de tudo para ganhar cada vez mais, com salários já muito maiores do que a média geral do serviço público e se aproximando cada vez mais do teto do funcionalismo, diz Carazza

“Essa ideia não foi para frente, não foi aprovada. Mas essas carreiras meio que se auto intitulam assim, ‘carreiras típicas de Estado’, que são carreiras muito poderosas, porque são muito articuladas dentro dos ministérios, e exercem funções muito relevantes para o funcionamento do Estado.”

Como estas são carreiras do Executivo, elas estão de fato sujeitas ao teto do funcionalismo – diferentemente do Judiciário e de algumas carreiras do Legislativo que conseguiram contornar a limitação constitucional.

No entanto, essas carreiras têm feito de tudo para ganhar cada vez mais, com salários já muito maiores do que a média geral do serviço público e se aproximando cada vez mais do teto.

“Temos observado isso acontecer e é uma situação que, inclusive, tem criado muitos constrangimentos para o próprio governo”, observa Carazza.

“Por exemplo, a recente greve nas universidades federais e a greve dos gestores ambientais do Ibama expõem essa desigualdade dentro do Poder Executivo.”

Essas carreiras costumam ter salários iniciais acima de R$ 20 mil e topos de carreira que se aproximam ou ultrapassam os R$ 30 mil – com a possibilidade se chegar ao rendimento máximo em cerca de dez anos, com avaliações de desempenho que são mera formalidade.

4. Advogados públicos

Em qualquer ação no Judiciário em que há uma parte ganhadora, o juiz decide um valor que deve ser pago pela parte que perdeu para compensar custos da disputa judicial. São os chamados “honorários de sucumbência”.

Tradicionalmente, esses valores eram destinados à parte vencedora da ação – a pessoa física, empresa ou União que foi acionada na Justiça e provou que estava correta.

Na advocacia privada, no entanto, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) conseguiu junto ao Congresso a aprovação de uma lei, que determinou que essa verba passasse a ser destinada ao advogado, e não mais à parte vencedora.

Os advogados da União, procuradores da Fazenda e de autarquias federais, e seus colegas nos Estados e municípios, foram então em busca da mesma vantagem, lembra Carazza.

Fachada da Advocacia Geral da União

CRÉDITO, RAFA NEDDERMEYER/AGÊNCIA BRASIL

Legenda da foto, Milhões de reais em honorários de sucumbência deixaram de ser pagos ao Tesouro, engordando os contracheques de advogados e procuradores públicos

Após algumas tentativas frustradas, a categoria conquistou essa benesse com a aprovação do novo Código de Processo Civil, em 2015.

“Desde então, em qualquer ação que a União, Estados ou municípios vençam na Justiça, uma parte do valor que antes ia para os cofres públicos, hoje em dia é distribuído para os advogados públicos federais, estaduais ou municipais”, explica o pesquisador.

Isso tem feito com que um advogado público da União, que já tem rendimentos na casa dos R$ 30 mil, receba todo mês, a título de honorários, um pagamento adicional de cerca de R$ 12 mil.

“Então, hoje em dia, apesar do teto ser respeitado dentro do Poder Executivo, praticamente todos os advogados públicos, procuradores da Fazenda Nacional e procuradores do Banco Central recebem o teto do ministro do Supremo, o que também não faz muito sentido”, aponta o professor.

5. Fiscais da Receita

Os fiscais da Receita Federal adotaram estratégia parecida à dos advogados públicos.

Desde 2016, os auditores fiscais conseguiram, em negociação com o governo, que uma parte da receita das multas tributárias arrecadadas e da venda de mercadorias apreendidas fosse destinada a eles mesmos, na forma de um “bônus de eficiência e produtividade”.

Mas o recebimento desse bônus independe do desempenho individual de cada fiscal e o valor do benefício, que era inicialmente de R$ 3 mil por mês, deve chegar a R$ 5 mil no segundo semestre de 2024, R$ 7 mil em 2025, atingindo finalmente R$ 11,5 mil mensais por servidor em 2026.

Totem da Superintendência da Receita Federal

CRÉDITO, MARCELO CAMARGO/AGÊNCIA BRASIL

Legenda da foto, Atualmente, praticamente todo fiscal da Receita Federal ganha o equivalente a um ministro do Supremo, observa o professor da Fundação Dom Cabral

“Isso vai fazer com que, novamente, praticamente todo fiscal da Receita Federal ganhe o equivalente ao ministro do Supremo”, observa Carazza.

“Tudo bem incorporar na remuneração uma parcela variável atrelada ao desempenho. Isso, inclusive, é uma boa prática que várias empresas já adotam”, pondera o especialista.

“Mas não faz sentido ter essa estrutura em que se ganha um salário básico já altíssimo, em torno dos R$ 30 mil, e mais uma parcela variável que não está atrelada ao desempenho individual de cada um dos setores. Como elas não estão atreladas a uma avaliação efetiva de entrega, de mérito, acabam virando mero penduricalho para turbinar o salário dessas carreiras, que já é bem alto.”

6. Militares

Os militares são um exemplo de como os privilégios nem sempre estão restritos à remuneração, observa Carazza.

Ele destaca duas vantagens principais da categoria: a Justiça Militar e o fato de os militares contarem com um regime especial de Previdência – tema que voltou ao debate público recentemente, após a ministra do Planejamento, Simone Tebet, defender uma reforma no benefício dos militares.

Militares com rostos pintados com pintura de camuflagem

CRÉDITO, MARCELLO CASAL JR./AGÊNCIA BRASIL

Legenda da foto, Previdência dos militares representa 13% do déficit previdenciário do governo federal, atendendo a apenas 1,6% do total de aposentados e pensionistas

O pesquisador observa que, desde o tempo do Império, os militares têm um ramo próprio da Justiça, originalmente criado para tratar de assuntos ligados à guerra.

Mas, após a redemocratização da América latina, o Brasil é um dos poucos países democráticos da região a manter até hoje um foro militar – o que Carazza avalia como uma “excrescência”.

“Quando os vários países da América Latina encerraram suas ditaduras militares, essas justiças militares foram extintas e causas militares agora são julgadas pela Justiça comum”, diz o pesquisador.

“Mas, no Brasil, permanecemos com essa estrutura que, com o passar do tempo, foi expandindo suas competências. Então a Justiça Militar deixa de julgar apenas casos relacionados à disciplina militar e começa a julgar casos de crimes envolvendo militares, inclusive em operações com civis.”

Carazza destaca ainda que, além de a Justiça Militar ter o costume de absolver ou aplicar penas drasticamente reduzidas aos militares que vão a julgamento por crimes, ela também tem custos completamente desproporcionais ao número de processos que movimenta.

Enquanto o funcionamento do Supremo Tribunal Militar (STM) consumiu cerca de R$ 600 milhões em 2022, tendo cerca de 3,7 mil processos pendentes, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) custa quase o triplo (R$ 1,6 bilhão), mas tem quase 70 vezes mais processos em andamento (256 mil).

Na Previdência militar o fenômeno é parecido. Embora o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) tivesse o maior peso no déficit previdenciário do governo federal em 2022 (representando 73,3% do déficit total), ele atende a mais de 30 milhões de aposentados e pensionistas (95,9% do total).

Já o regime de previdência dos militares representava então 13% do déficit, para apenas 519 mil aposentados militares e seus pensionistas (ou 1,6% do total de beneficiários).

“Essa é uma briga que nenhum presidente quis comprar ainda”, observa Carraza.

“Mas vamos ver se o governo Lula vai ter coragem de colocar a mão nesse vespeiro que é atacar os privilégios que os militares têm na questão previdenciária.”

7. Políticos

A lista de privilégios da classe política é extensa, enumera o professor da Fundação Dom Cabral.

Começa com as cotas parlamentares para custear passagens aéreas, aluguel de veículos, publicidade, pesquisa e consultorias e a manutenção de escritórios em redutos eleitorais.

Passa pelos cargos comissionados, as verbas do Fundo Partidário e do Fundo Eleitoral, as emendas parlamentares do Orçamento, e a proteção contra punições gerada pelo sistema de indicações dos tribunais de contas e pela instituição do foro privilegiado.

Deputados no plenário da Câmara

CRÉDITO, FABIO RODRIGUES POZZEBOM/AGÊNCIA BRASIL

Legenda da foto, Privilégios desequilibram o jogo político e aumentam as chances de reeleição de um parlamentar que já exerce o cargo, destaca o pesquisador

O resultado de tudo isso é uma condição de concorrência diferente entre o parlamentar eleito e seus adversários num processo eleitoral, considera o pesquisador.

“Isso desequilibra o jogo e aumenta as chances de reeleição de um parlamentar que já exerce o cargo. Há um combo de benefícios eleitorais, remuneratórios, de proteção judicial, orçamentários e de cargos, que acabam beneficiando muito a classe política estabelecida.”

8. Cartórios

Por fim, chegamos aos cartórios, incluídas por Carazza à lista por prestarem um serviço por delegação pública, terem a titularidade auferida por concurso público de provas e títulos, mas gerarem lucros (gigantescos) privados.

Aqui a coisa já foi pior, é verdade. No passado, a titularidade dos cartórios passava de pai para filho, com indicações por critérios políticos. Desde a Constituição de 1988, passaram a valer as regras atuais, pondo fim à hereditariedade.

O pesquisador observa, porém, que os titulares de cartórios seguem desfrutando de uma série de privilégios, como o fato de não haver limites para a remuneração, o que leva, por exemplo, ao rendimento de R$ 500 mil dos donos de cartórios do Distrito Federal, citados no início desse texto.

Pessoas sendo atendidas em cartório de registro civil

CRÉDITO, PEDRO FRANÇA/AGÊNCIA SENADO

Legenda da foto, Não há nenhum Estado da federação onde a remuneração média de um titular de cartório seja inferior a R$ 40 mil, segundo dados da Receita Federal

Embora esse seja um valor fora da curva, não há nenhum Estado da federação onde a remuneração média de um titular de cartório seja inferior a R$ 40 mil mensais, segundo os dados da Receita Federal.

Além disso, há pouca fiscalização quanto à qualidade dos serviços prestados.

“É um serviço que impõe um ônus muito grande para as transações econômicas no Brasil, desde a compra e venda de imóveis, transferências de veículos, abertura de uma empresa, até atos corriqueiros de firmas e contratos.”

“Então é uma atividade com uma remuneração altíssima, pouco regulada e que onera em termos de tempo e de custo, de uma forma muito significativa, a população brasileira em geral.”

Carazza avalia que algumas soluções possíveis aqui incluiriam a limitação dos rendimentos de cartórios; eliminação de exclusividades territoriais nos registros de imóveis; a padronização da qualidade do atendimento; e a digitalização da escrituração.

“Há um amplo caminho para baratear e elevar a eficiência das trocas na economia brasileira.”

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