Vitor Tavares, Da BBC News Brasil em São Paulo – “Mulherada, pretos e pretas, é possível”. Com um sorriso estampado no rosto, a judoca Beatriz Souza mandou o recado a milhões de brasileiros logo após conquistar a primeira medalha de ouro do país nos Jogos Olímpicos de Paris 2024.
Também feliz em “representar a negritude”, a ginasta Rebeca Andrade – ganhadora do segundo ouro em Paris – falava em entrevistas antes das competições sobre a importância de ser “mais uma referência negra para todas as crianças e adultos”, assim como a antecessora Daiane dos Santos foi para ela.
Daiane, hoje comentarista da ginástica na TV Globo, viralizou num discurso emocionado logo após o ouro de Rebeca.
“Ela representa todos. Mas e a representatividade de 56% de uma nação, que é excluída, subjugada, que muitas vezes quando ganha é pertencente. [Mas] e quando não ganha? […] Tomara que as pessoas reconheçam o valor dessas mulheres pretas.”
A conquista de Rebeca também ganhou páginas de jornais de todo o mundo e as redes sociais com a foto em que as ginastas americanas Simone Biles e Jordan Chiles (segundo e terceiro lugar no solo, respectivamente, todas negras) prestam reverência à brasileira no pódio.
“Ainda não superei esse lindo momento de irmandade e espírito esportivo! Você pode sentir o amor brilhando através dessas moças”, escreveu a ex-primeira-dama dos EUA Michelle Obama no X.
Provocadas a falar sobre racismo e representatividade ou escolhendo por conta própria trazer o tema ao debate, as atletas negras brasileiras têm sido responsáveis não apenas por colocar o Brasil no pódio, mas por mostrar a milhões de mulheres que aquele lugar é um “lugar possível”, dizem pesquisadores que estudam a presença dos negros nos esportes olímpicos à BBC News Brasil.
Um protagonismo que acontece em meio à “Olimpíada das mulheres” – em que o Brasil pela primeira vez na história levou uma delegação com maioria feminina, justamente nos primeiros Jogos com paridade de gênero no número total de atletas.
Das 13 medalhas conquistadas até o momento, 10 foram por mulheres — incluindo a equipe mista de judô.
“O sucesso delas é um ótimo momento para a gente refletir a questão racial de forma mais ampla na sociedade”, diz a professora Doiara dos Santos, da Universidade Federal de Viçosa (UFV), que pesquisa questões de gênero e raça nos esportes.
“Por muito tempo os atletas foram ensinados a silenciar, com aquela ideia do esporte disciplinador, em que só importa o ‘esporte pelo esporte’, sem mensagens de qualquer ordem social. É cada vez mais importante o atleta se situar como sujeito no mundo”.
Para o professor e pesquisador Neilton Ferreira Júnior, autor do estudo Olimpismo negro: uma antologia das resistências ao racismo no esportena Universidade de São Paulo (USP) e professor na UFV, nesse momento de celebração é importante lembrar que o “ineditismo de mulheres negras não é mágica”.
“É um processo de construção sinuoso e mais complexo. Se a gente só valorizar o feito pelo feito, a gente vai esquecer que existem outras Rafaelas e outras Rayssas”, diz Ferreira Júnior, lembrando outras medalhistas em Paris.
Rafaela Silva conquistou o bronze por equipe mista no judô (junto a Bia Souza, Larissa Pimenta, William Lima, Rafael Silva, Léo Gonçalves, Guilherme Schimidt e Rafael Macedo). O time ainda contava com Ketleyn Quadros, a primeira mulher brasileira a conquistar uma medalha individual em Olimpíada, em Pequim 2008.
A medalha de Rafaela marcou a volta por cima da atleta que foi alvo de ataques racistas após perder a medalha em Londres 2012, conquistou o primeiro ouro do Brasil nos Jogos do Rio 2016, foi suspensa por doping antes de Tóquio 2020 e voltou ao tatame em Paris 2024.
Já Rayssa Leal, prata no skate em Tóquio e bronze em Paris, se tornou a atleta mais nova a conquistar medalhas em Olimpíadas diferentes, com seus 16 anos.
Em alguma medida, todas elas já falaram sobre serem inspiração para meninas negras e do racismo no esporte.
Um sinal, como dizem os pesquisadores à BBC News Brasil, que uma medalha não é “apenas” uma medalha. Ao colocarem no peito, elas carregam junto outras atletas e reescrevem a própria história da Olimpíada.
Uma demanda, como explica o professor Ferreira Júnior, que pode levar inclusive a um processo de “cansaço psíquico” – algo que precisa ter atenção de confederações esportivas.
Mas para entender o simbolismo das conquistas nos Jogos em 2024, voltemos um pouco à história.
Esporte para ‘civilizar’ – e a volta por cima dos negros
Os Jogos Olímpicos – e a maioria dos esportes modernos – são fruto de um processo histórico estabelecido pelas nações da Europa e os Estados Unidos no final do século 19 e início do século 20.
A tentativa de transformar a ideia dos esportes em algo “universal” – com competições internacionais e instituições como a YMCA, por exemplo – ocorre na onda de expansão colonialistas dos países, segundo explica o professor Neilton Ferreira Júnior.
“É a ideia do Ocidente como com uma grande ideologia ou uma cultura das culturas”, diz.
O professor exemplifica o pensamento com declarações ditas pelo próprio barão francês Pierre de Coubertin, o responsável por recriar os jogos da era moderna em 1896 em Atenas, na Grécia.
Coubertin acreditava, diz Ferreira Júnior, que o esporte era uma forma excelente de “educar e civilizar” os povos colonizados. Em textos, dizia que africanos deveriam experimentar várias modalidades individuais – e não coletivas, que podiam inspirar insurreições.
Ou seja, na concepção da Olimpíada, havia uma ideia de separação racial nos esportes – algo que viria ser reforçado mais tarde por ideias de pré-disposição de negros a determinados esportes de força ou velocidade, por exemplo.
Essa expansão do olimpismo, com o predomínio desde sempre das potências europeias no quadro de medalhas, se sobrepôs a outras práticas corporais presentes no mundo, que não tinha objetivo de competição ou superação dos limites, explica o pesquisador.
Até hoje, o “Comitê Olímpico Internacional (criado por Coubertin) é uma instituição hegemonicamente Europeia no seu corpo burocrático, e o programa Olímpico tem os esportes ocidentais europeus e brancos que reproduzem esse sistema historicamente”, avalia a também professora Doiara dos Santos.
Mas a história dos Jogos Olímpicos – ou as medalhas recentes de brasileiras e o pódio 100% negro na ginástica – mostram que as classes que foram oprimidas encontraram nas práticas esportivas modernas “uma nova afirmação”.
“Se eu sou levado a um lugar e não posso voltar porque as pontes foram destruídas, eu construo a partir daí um processo de popularização do esporte, com os não brancos afirmando a sua identidade e o seu posicionamento político”, diz o professor Neilton Junior.
Alguns exemplos são o futebol, um esporte criado na Inglaterra e que tem na Seleção brasileira sua equipe a mais vitoriosa; ou o críquete, esporte inglês que se tornou fenômeno em ex-colônias como Índia e Trinidad e Tobago.
Nos esportes individuais, são nomes como o boxeador Muhammad Ali e os velocistas Tommie Smith e John Carlos, que subiram ao pódio para se posicionar contra a segregação racial nos EUA. Ou também quando Jesse Owens desafiou nos Jogos de Berlim, em 1936, o próprio Hitler e sua noção distorcida de supremacia ariana, ao garantir quatro medalhas de ouro no atletismo.
Também temos a brasileira Irenice Rodrigues, que chegou a organizar uma greve no Brasil contra o antigo Conselho Nacional de Desportos por melhores condições para atletas.
E ainda Simone Biles, Usain Bolt, Daiane dos Santos, Rafaela Silva…
“Esses pioneirismos são muito bons de vivenciar e celebrar. Mas eles escancaram marcas de desigualdades que só agora a gente está começando a diluir num processo que remonta a vários esforços, como o acesso ao esporte via projetos sociais”, avalia Doiara Santos.
Atletas como Rebeca Andrade e Beatriz Souza chegaram onde chegaram por meio da participação de projetos e políticas sociais de apoio ao esporte.
Esporte de branco x esporte de preto
Por muitos anos, a ciência colaborou para um projeto de de racismo científico, diz a professora Doiara dos Santos, que já pesquisou especificamente a falta de atletas negros na natação.
A ideia de que corpos negros teriam desvantagem nas piscinas, devido a uma densidade corporal maior, era usada nos EUA para defender a participação dos negros restrita a outros esportes, como lutas ou atletismo.
No Brasil, negros eram proibidos em piscinas de muitos clubes até 1950. Doiara dos Santos resgata a velocista Melania Luz, primeira mulher negra a defender o Brasil numa Olimpíada, que relatou a limpeza da piscina de um clube em São Paulo após negros nadadarem ali.
A professora se deparou ainda com pesquisas nos EUA que mostraram que o principal motivo da falta de negros na natação não era a biologia, mas a falta de ídolos para crianças negras no país.
“As famílias não viam na natação referências de sucesso. Elas viam no basquete, no futebol americano e eram ali que elas iam investir seus filhos no esporte”, conta.
Essa inspiração é o caso, por exemplo, de Rebeca Andrade, que em muitas entrevistas já falou de Daiane dos Santos como uma propulsora na sua carreira na ginástica artística.
“Embora a gente tenha esses contrastes sobre biotipo, questões fenotípicas, associadas a fatores que privilegiam ou desprivilegiam brancos e negros nos diferentes esportes, eles não são definitivos”, diz a professora.
O debate biológico, defende, precisa estar acompanhado de variáveis culturais e sociais.
O professor Neilton Júnior explica que “existe uma certa orientação que circula no Imaginário esportivo, especialmente de alto rendimento, de que o corpo negro está destinado ao desempenho de determinadas tarefas, em especial as de força”.
“Mas não são diferenças biológicas que imediatamente determinam o resultado de uma prova intelectual ou de uma prova esportiva. A ideia de que vou preparar um atleta para que ele possa obedecer algum tipo de destino é totalmente falsa e já foi desmentida desde os anos 1970”, diz.
Os atletas que virão
O momento do protagonismo do esporte feminino e das atletas negras é oportuno para discutir avanços no Brasil em relação ao apoio e políticas públicas, avalia Doiara dos Santos.
“A gente não pode naturalizar trajetórias de precariedade de atletas negro, com narrativas que romantizam a experiência de dores e sofrimento, para dizer ‘apesar disso, conquistei essa medalha'”, avalia a pesquisadora.
O professor Neilton ressalta que esse ineditismo das brasileiras acontece num país onde o futebol masculino ainda domina totalmente o cenário esportivo e onde nunca houve um programa antirracista coletivo, elaborado por atletas e institutições, como ocorreu com atletas negros dos EUA.
“É uma luta que se dá individualmente, que se dá como uma resposta circunstancial, como uma reação”. Um exemplo claro é Vinicius Junior, brasileiro alvo de ataques racista no futebol da Espanha.
Outro aspecto que precisa ser superado, segundo pesquisadores, é “a ideia de que o corpo negro é um corpo braçal, destituído de capacidade intelectual”.
Pesquisas já mostraram, por exemplo, que em narrações na televisão de esportes coletivos, quando se elogia atletas negros, na maioria das vezes se fala do físico.
“Esses pioneirismos revelam um processo de superação, mas que não existe bandeira fincada, conquistei e ponto. Para garantir atletas depois de Rebeca, políticas de esporte precisam democratizar mais o esporte”, diz a pesquisa Doiara dos Santos
“As vitórias fazem parte de uma de uma constelação de processos bem sucedidos. Tem uma coletividade, mas ela não é consciente, é uma espécie de inconsciente coletivo do negro”, completa Ferreira Júnior.