Eles fazem parte dos cem maiores municípios do país, que somam 37% do território brasileiro; isso significa que as pastas responsáveis pela fiscalização atendem os interesses dos setores econômicos; confira relatório e vídeo do De Olho nos Ruralistas
De Olho Nos Ruralistas, Por Bruno Stankevicius Bassi
Apenas 48 dos cem maiores municípios brasileiros possuem secretarias ou órgãos próprios para a gestão ambiental. Nos outros 52 casos, as atribuições de fiscalização, licenciamento, controle e monitoramento ficam a cargo de secretarias mistas. Levantamento do De Olho nos Ruralistas mostra que 30 pastas sobrepõem o meio ambiente com fomento ao agronegócio, mineração e turismo — justamente os setores que dependem da expedição de licenças ambientais para atividades poluentes ou danosas aos ecossistemas.
Os dados integram o dossiê “Os Gigantes“, lançado pelo observatório nesta quinta-feira (5) durante debate realizado no Armazém do Campo, em São Paulo. O evento marcou a comemoração dos 8 anos do observatório e o lançamento de uma campanha institucional visando alcançar 300 novos apoiadores: “Debate e ato Guarani Mbyá marcam lançamento do dossiê “Os Gigantes” e 8 anos do De Olho“.
O primeiro capítulo do estudo traz uma análise das políticas ambientais promovidas pelas prefeituras dos cem maiores municípios do país, focando em ações de adaptação às mudanças climáticas e de prevenção a desastres geo-hidrológicos. Um dos itens analisados foi a existência de conflitos de interesse nas pastas dedicadas à área.
É comum que as prefeituras juntem o setor de turismo à secretaria de Meio Ambiente sob a justificativa de incentivar circuitos rurais, ecológicos e de atividades ao ar livre, como trilhas, cachoeiras e gastronomia “da roça”. Mas diversas ações do MPF e dos Ministérios Públicos estaduais questionam empreendimentos turísticos que violam leis ambientais — um dos principais fatores para a separação entre as duas pastas.
No caso do agronegócio, o conflito de interesses é latente. Além dos dez municípios em que a gestão ambiental é comandada pela pasta de agricultura ou de desenvolvimento agrário, em outros três — Guajará-Mirim (RO), Colniza (MT) e Rorainópolis (RR) — os secretários de Agricultura acumularam os dois cargos, cuidando também da secretaria de Meio Ambiente.
O Mato Grosso se destaca nesse conflito de interesses: dos vinte municípios que integram a lista dos Gigantes, somente seis têm secretarias totalmente dedicadas ao ambiente. São elas: Aripuanã, Poconé, Vila Bela da Santíssima Trindade, Rondolândia, Nova Ubiratã e São Félix do Araguaia.
LÍDERES EM MINERAÇÃO NÃO POSSUEM SECRETARIA PRÓPRIA DE MEIO AMBIENTE
Itaituba e Jacareacanga, no extremo oeste do Pará, ao longo da Rodovia Transamazônica, lideram a lista dos Gigantes com maior área dedicada à mineração. São, respectivamente, 714.97 km² e 193,70 km², de acordo com dados de 2022 extraídos da plataforma MapBiomas. Somadas, as lavras minerárias nos dois municípios são do tamanho da capital Belém.
Nenhum deles possui secretaria específica para a área ambiental: no caso de Jacareacanga, o orçamento é compartilhado com Turismo; em Itaituba, onde um monumento em homenagem a um garimpeiro marca a orla do Rio Tapajós, existe uma Secretaria de Meio Ambiente e Mineração.
O prefeito reeleito de Itaituba, Valmir Climaco (MDB), contou com o apoio de Valdinei Mauro de Souza, o Nei Garimpeiro, para a campanha de 2020. Bilionário do garimpo e do agronegócio, Nei doou R$ 200 mil para o político. Como resposta ao agrado, o setor recebeu atenção especial na administração de Climaco. Em entrevista à revista Veja, em junho, o prefeito celebrou a concessão de 400 licenças de exploração mineral em sua gestão.
O feito foi realizado com o aval do governo do Pará que, em 2015, se tornou o único estado da Amazônia Legal a outorgar aos municípios o poder de conceder licenças minerárias para lavras de até 500 hectares. Em 2023, o Instituto Socioambiental (ISA) e o WWF Brasil apontaram em nota técnicaos prejuízos ambientais decorrentes da concessão estadual. Entre os argumentos apresentados no estudo está a incapacidade dos municípios de avaliar os impactos ambientais resultantes da exploração mineral.
Em 2022, um laudo do Instituto das Águas da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa) constatou que plumas de sedimentos dos garimpos de Jacareacanga e Itaituba chegaram até Santarém, na foz do Tapajós, escurecendo as águas de Alter do Chão, um dos principais pontos turísticos do estado, conhecido como “Caribe Amazônico”. Os detritos percorreram mais de 700 quilômetros em relação ao ponto de origem.
Em 2022, o Ministério Público Federal instaurou inquérito civil para apurar irregularidades na concessão de licenças ambientais para atividades minerárias cometidas pelas secretarias de Meio Ambiente de Itaituba e Jacareacanga. A ação em andamento tenta identificar se as prefeituras permitem que empresas e cooperativas de garimpeiros explorem ouro em áreas protegidas.
INVESTIGADA POR LIGAÇÃO COM O PCC, COOPERATIVA QUER EXPLORAR APA DO TAPAJÓS
No caso de Itaituba, a conexão com o setor é clara. O secretário de Meio Ambiente e Mineração, Bruno Rolim da Silva, já deu entrevistas se dizendo favorável à legalização do garimpo. Em fevereiro de 2022, ele acompanhou Climaco em audiência no Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Segundo reportagem da Agência Pública, participaram da reunião o coronel Homero de Giorge Cerqueira, ex-presidente da ICMBio, hoje lobista do garimpo, e o presidente da Cooperativa dos Garimpeiros Mineradores e Produtores de Ouro do Tapajós (Coopouro), Antônio Araújo.
Próximo de Climaco, Araújo participou de uma audiência pública na Câmara Municipal de Itaituba em março de 2022, defendendo a liberação do garimpo na Área de Preservação Ambiental (APA) do Tapajós, uma das unidades de conservação mais impactadas pela atividade no país.
Com 2 milhões de hectares, a unidade tem seu território dividido entre os dois Gigantes líderes em garimpo: 85% estão no município de Itaituba e 14% em Jacareacanga, além de uma pequena parcela em Trairão, também no Pará.
Entre 2022 e 2023, a APA do Tapajós foi a área protegida mais desmatada da Amazônia Legal, de acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). É também a unidade de conservação mais invadida por garimpeiros na região: dados do MapBiomas, de 2022, mostram que 51,6 mil hectares estavam submetidos à exploração minerária. A área lidera o ranking de pistas de pouso dentro unidades de conversação: são 156, a maior parte não registrada na Agência Nacional de Aviação (Anac). Muitas pistas ficam próximas dos garimpos: em Itaituba, elas despontam em plena Rodovia Transamazônica.
Um ano antes da audiência pública, em 2021, a Coopouro foi alvo de mandado de busca e apreensão expedida pelo juiz Alexandre Rizzi, da 1ª Vara Penal de Santarém. A cooperativa foi investigada no âmbito da operação Narcos Gold, que apurava a concessão de licenças de garimpo a Heverton Soares Oliveira, o “Grota”, membro do Primeiro Comando da Capital (PCC).
Após dois mandatos, Valmir Climaco apoia em 2024 a candidatura de seu vice Nicodemos Aguiar (MDB), um pecuarista e apoiador do garimpo. Em sua declaração de bens ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Aguiar listou quatro propriedades, totalizando 1.100 hectares.
CONFIRA VÍDEO SOBRE “OS GIGANTES” EM NOSSO CANAL NO YOUTUBE
O território brasileiro comporta quase todo o continente europeu. Um quinto das Américas. É a maior área continental do hemisfério sul. O Oiapoque, no Amapá, está mais próximo do Canadá do que em relação a Chuí, no extremo sul do país. Entre o litoral paraibano, onde se inicia a Rodovia Transamazônica, e Mâncio Lima, na divisa com o Peru, são 4.326 quilômetros — quase a mesma distância entre Lisboa e Moscou.
Entre esses extremos existem 5.568 municípios. Entre eles, desponta um time seleto cujas proporções são comparáveis a países inteiros: os cem maiores municípios do país. O maior deles, Altamira (PA), é maior que a Grécia. Bem maior que Portugal.
“É uma fatia decisiva e esquecida do Brasil”, aponta o diretor do De Olho nos Ruralistas, Alceu Luís Castilho. “Esses municípios costumam ficar fora da cobertura eleitoral, diante da ênfase nos grandes centros urbanos, mas a importância ambiental deles é gigantesca. O impacto deles é planetário”.
Além do dossiê “Os Gigantes”, o observatório publica uma série de vídeos e reportagens detalhando os principais achados do estudo, que mapeia as políticas ambientais dos cem municípios e conta casos emblemáticos de conflitos de interesses envolvendo prefeitos-fazendeiros e a influência de empresas e sindicatos rurais.
O primeiro episódio está disponível em nosso canal no YouTube. Confira abaixo:
| Bruno Stankevicius Bassi é coordenador de pesquisa do De Olho nos Ruralistas. |