Quando a esquerda decidiu se eximir da luta pela democratização da comunicação?

Quando a esquerda decidiu se eximir da luta pela democratização da comunicação?

A elite que controla a comunicação consegue construir agenda pública através de telejornais, programas de rádio e lives

Vanessa Gonzaga
Brasil de Fato

Hoje, 17 de outubro, é o Dia Nacional de Luta pela Democratização da Comunicação. Numa conjuntura de intensas mudanças em torno das formas de se comunicar, essa data precisa voltar a fazer parte do nosso calendário de lutas da esquerda brasileira. Neste cenário, acreditamos que esse texto é uma forma de contribuir com a atualização do debate e do que significa democratizar a mídia hoje e o fazemos a partir do nosso acúmulo coletivo no Movimento Brasil Popular e do conjunto das organizações do campo popular. 

Como toda pauta que polariza e ataca diretamente as elites desse país, há quem diga que a conjuntura não é favorável a essa luta, pois corremos o risco de “desgastar o governo”. Se não for num governo de esquerda, em um momento de intensa utilização das redes sociais pela direita para propagar o ódio, quando a imprensa burguesa utiliza do seu poder para agitar as bandeiras do sionismo e do imperialismo através de coberturas jornalísticas que questionam os limites da ética, quando será a oportunidade de debater esse tema? 

Se, por muito tempo, as organizações de luta pela democratização dos meios de comunicação questionavam as concessões de rádio e TV e apontavam o monopólio das comunicações no Brasil, onde 11 famílias dominam os meios de comunicação mais influentes, hoje, essa pauta ganha contornos maiores e mais dramáticos. Para além das concessões, precisamos também lutar pela regulamentação das redes sociais no Brasil. 

Ao contrário das análises fatalistas que apontavam que o rádio, a TV e até o jornalismo iriam morrer para dar lugar à Internet, hoje esses meios coexistem e se retroalimentam. Em outras palavras, a elite brasileira que controla as comunicações consegue construir a agenda pública através dos telejornais, dos programas de rádio, de lives, posts, podcasts, vídeos, trending topics e o que mais estiver ao seu alcance através de redes que funcionam de forma “livre” num péssimo sentido, porque é o tipo de “liberdade” que ataca direitos básicos. 

Um grande exemplo dessa “liberdade” é o Twitter/X, que após ser comprado pelo bilionário Elon Musk, se potencializou como uma ferramenta de ódio e de propaganda neofascista ao redor do mundo. Especificamente no Brasil, a falta de regulamentação da rede e a permissividade de Musk criaram um cenário favorável para que a rede se tornasse um espaço virtual propício à criação e fortalecimento de grupos neonazistas, misóginos e racistas, sem falar que a falta de moderação dos conteúdos facilitou o aumento de crimes virtuais, como a divulgação de conteúdos de abuso sexual de crianças. 

Quando falamos em regulamentação das redes, estamos falando de regras para a Internet inteira que não se torne o que o Twitter/X se tornou. Ao menor sinal de avanço de legislação nesse sentido, a exemplo do PL 2630/2020, o PL de combate àsfake news, a mídia hegemônica brasileira se levanta e evoca o art. 220 da Constituição Brasileira, confunde alhos e bugalhos e afirma, com outras palavras, que impor limites para as redes que compartilham notícias falsas é uma forma de censura.  

Para além da regulamentação das redes, quando falamos em democratização das mídias, é necessário tocar em uma ferida do governo, que é o financiamento de grandes empresas de comunicação com dinheiro público enquanto milhares de iniciativas comunitárias, populares e que prestam um serviço de utilidade pública e exercício da cidadania sobrevivem com vaquinhas virtuais. 

Para citar apenas um exemplo, a Secretaria de Comunicação e dos ministérios do governo aumentaram o repasse de R$ 89 milhões em 2022 para R$ 142 milhões em 2023 para a Rede Globo. Em 2023, a Rede Globo, sozinha, recebeu 56% da verba de publicidade governamental. Se queremos democratizar a mídia, é fundamental pautar também a democratização do acesso a recursos para que não sejamos engolidos pelos tubarões da comunicação.

Evidentemente, esse cenário desfavorável para nós existe há muito tempo, porque a esquerda, de maneira coletiva, tardou em ver a comunicação como uma parte fundamental da luta ideológica e do diálogo com o povo, relegando esse debate como um acessório das lutas, e não como parte delas. 

Quando pontuamos que a comunicação hoje precisa fazer parte da estratégia das organizações, falamos isso em dois sentidos: o primeiro é estrutural, porque é necessário munir as equipes e dar condições para que os coletivos de comunicação atuem com a técnica e a qualidade necessária para competir com as máquinas de desinformação da direita. O segundo é político, porque a esquerda precisa coletivamente se apropriar do debate da comunicação de maneira mais profunda, indo para além do debate dos algoritmos e do engajamento e fazendo uma reflexão profunda em torno dos desafios de comunicar, dialogar e mobilizar o povo, até porque comunicação é política.

Nesse cenário extremamente difícil para as mídias populares, comunitárias e alternativas, nós seguimos fazendo o nosso trabalho e exercendo o direito humano à comunicação. Muitas vezes nos desanimam com uma análise derrotista de que a direita hegemoniza as redes e que essa é uma batalha impossível de vencer. Mas, a despeito das comparações desleais e do derrotismo, nós continuamos produzindo comunicação de qualidade, acessível, plural e voltada à conscientização e a mobilização do povo, que é por natureza comunicativo e que cria suas formas de se comunicar. 

Por fim, precisamos nos apropriar coletivamente deste debate, nos formar; voltar a construir lutas em torno do tema da comunicação; seguir pautando o fim dos monopólios e o investimento em iniciativas de comunicação popular e, não menos importante, encarar o direito à comunicação como um direito humano, básico, e que precisa ser garantido ao povo brasileiro se queremos acumular forças, corações e mentes para a construção de um outro projeto de país. 

*Vanessa Gonzaga é militante do Movimento Brasil Popular

**Este é um artigo de opinião não necessariamente representa a linha editorial do Brasil de Fato.

Edição: Thalita Pires

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