Comunidades Kaiowá e Terena estavam há três dias em bloqueios de rodovia e ruas por solução definitiva da crise hídrica
A repressão foi fartamente registrada pelos indígenas. Um vídeo mostra policiais com escudos dentro da aldeia Jaguapiru, derrubando e levando um homem à força e atirando com bala de borracha à queima-roupa na perna de uma mulher. Outro registra uma indígena sentada em uma cadeira com a orelha sangrando, sendo acudida por parentes.
Após meses sem água e com a situação especialmente grave nas aldeias Jaguapiru e Bororó, os indígenas dos povos Terena e Guarani Kaiowá se mobilizaram. Desde segunda-feira (25) bloqueiam a rodovia MS-156, que liga Dourados (MS) a Itaporã (MS), e outros pontos na estrada que dá acesso ao Hospital da Missão Evangélica Caiuá, dentro da aldeia. Todos os locais foram reprimidos pela PM.
A reivindicação principal é o imediato início da perfuração de poços na Reserva Indígena de Dourados, onde vivem cerca de 20 mil pessoas. A crise hídrica na comunidade se arrasta há décadas e se intensificou nos últimos meses com a escassez do abastecimento feito por caminhões-pipa.
‘Ao invés de água, mandam Tropa de Choque’
“A Tropa de Choque já chegou atirando. Tem idosos, crianças, pessoas machucadas. Se não houver resolução, vai ficar feia a situação aqui”, conta Leomar Trovão, liderança Guarani Kaiowá da aldeia Jaguapiru.
Na repressão policial na rodovia estadual, que aconteceu ao som de gritos de ordem repetindo “água, água”, ao menos uma criança se feriu e teve de ser socorrida pela ambulância do Corpo de Bombeiros.
“Não tem como viver sem água. Não tem condições. A PM está aqui dentro do território, pelo menos três pessoas foram presas e estamos sem apoio de nenhum órgão federal. Não tem Funai, não tem Polícia Federal, não tem ninguém para nos auxiliar”, ressalta Leomar.
Em outro vídeo, um morador da aldeia Jaguapiru mostra a PM ao fundo e a marca de bala de borracha na costela de uma indígena que está de bicicleta.
“A indignação é muito grande porque é muito fácil de resolver e não querem. Ao invés de mandar solução para a nossa comunidade, mandam a Tropa de Choque. Nós estamos no nosso direito de pedir o básico para a nossa aldeia, que é o abastecimento de água. Olha a situação horrível que está acontecendo, isso não pode acontecer”, denuncia Ezequias, o indígena autor do vídeo.
Em nota conjunta, a Aty Guasu, Grande Assembleia Guarani Kaiowá, o Conselho Terena e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) denunciam que “conforme a Constituição Federal, área indígena é de jurisdição federal, ou seja, a ação da Polícia Militar na aldeia Jaguapiru é ilegal e, conforme lideranças ouvidas, se tornou comum, como se a reserva fosse apenas um bairro de Dourados”.
‘Comunidade revoltada’
Também moradora da aldeia Jaguapiru, Júlia* Kaiowá conversou com o Brasil de Fato ao som de bombas no fundo. Dentro de sua casa, pediu que o marido ligasse a TV para amenizar o susto do sobrinho, ainda criança.
“Nessa época do ano tem poucas chuvas e um consumo maior por conta do verão, então falta muita água. Sempre tem promessas de fazer poços, mas não acontece. Aqui na aldeia tem sete poços artesianos, mas a população é muito grande, estamos beirando os 20 mil, não tem capacidade de abastecimento”, explica Júlia.
“A comunidade está decepcionada e revoltada. Com a mudança do governo federal, a gente esperava que a situação da água ia melhorar, porque afeta escola, saúde. Tem alunos que às vezes não vão para a escola porque tem que ir buscar água para fazer higiene básica, para alimentação”, descreve a indígena Guarani Kaiowá.
Cristiane Terena conta que a decisão de bloquear rodovias veio após esgotadas outras vias. “Já tentamos diálogo, já enviamos documentos, já fizemos reunião”, relata.
“Nós estávamos numa expectativa de um projeto, uma parceria entre governo federal pelo MPI [Ministério dos Povos Indígenas], governo estadual, Itaipu e os municípios, para a perfuração de poços da região Cone Sul do nosso estado. Teve o lançamento semana passada em Ponta Porã (MS). Já vínhamos ouvindo que nossa comunidade não estaria contemplada no projeto. No lançamento, tivemos a certeza”, explica Cristiane.
“Ao invés de ouvir nosso clamor”, segue Cristiane Terena, se referindo à gestão de Eduardo Riedel (PSDB), “o governo estadual manda a Tropa de Choque nos atacar dentro da nossa comunidade. Invadiu casas. Estamos com uma ñandesy[rezadora] hospitalizada, temos crianças que inalaram muito gás”.
O Brasil de Fato entrou em contato com a Secretaria de Segurança Pública do Mato Grosso do Sul, mas não teve retorno até o fechamento da matéria. O texto será atualizado caso a pasta do governo Riedel se posicione.
De acordo com Júlia Kaiowá, nesta terça-feira (26) houve uma tentativa de negociação com a prefeitura de Itaporã: um caminhão-pipa em troca da liberação das vias. “Eles trouxeram um caminhão-pipa todo enferrujado, inadequado do ponto de vista de higiene, desses usados para tirar poeira da estrada. Como que essa água vai ser para consumo? Gerou mais revolta”, alega.
A resposta da Secretaria de Saúde Indígena
Procurada, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) não enviou posicionamento sobre a situação, se limitou a dizer que se busque a Secretaria de Saúde Indígena (Sesai). Vinculados ao Ministério da Saúde, a Sesai e o Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) do MS informaram que tem “um contrato para a distribuição de mais de 70 mil litros de água potável por semana via caminhões-pipa e articula com a Prefeitura de Itaporã o fornecimento de 100 mil litros de água por dia, sendo 50 mil destinados a Jaguapiru e 50 mil a Bororó”.
“Além disso, estão em andamento a perfuração de dois novos poços, um em cada aldeia, em parceria com a Prefeitura Municipal de Dourados e a Secretaria de Estado e Cidadania, com previsão de conclusão em até 40 dias”, diz a Sesai, em nota.
A solução a longo prazo, segundo a secretaria vinculada ao Ministério da Saúde, está numa aposta de construir uma rede de abastecimento que atenda a região urbana de Dourados, em conjunto com o Ministério das Cidades, o governo do MS e a Sanesul, empresa de saneamento do estado. A proposta, no entanto, ainda está em negociação.
Enquanto isso, para a Sesai, os “14 sistemas simplificados de abastecimento de água não atendem plenamente à demanda local” por conta de “desperdício” e “uso inadequado da água tratada”.
De acordo com Cristiane Terena, mesmo após a repressão, “a mobilização segue”: “Não vamos arredar o pé se não trouxerem para nós um projeto com data prevista para o início da obra de perfuração de poços nas comunidades Bororó e Jaguapiru. E um socorro imediato com distribuição de caixas d’água para quem não tem. Não aguentamos mais”.
Edição: Martina Medina