Emissora fica em Tabatinga, tríplice fronteira e região estratégica, onde Bruno Pereira e Dom Phillips foram assassinados. Cessão representa perda para a comunicação pública
Le Monde Diplomatique – A Empresa Brasil de Comunicação (EBC) assinou um protocolo com a intenção de transferir para o Sistema Encontro das Águas, a rede de rádio e TV ligada ao governo do Amazonas, o controle da Rádio Nacional do Alto Solimões, a maior e mais importante emissora de rádio na tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru, criada pela EBC a partir de um pedido da população local. O anúncio foi feito nesta segunda-feira, dia 2, mas não foi detalhado pela empresa federal.
Com isso, o governo do Amazonas, que já domina a comunicação privada, contará com mais um veículo para a comunicação do governador, Wilson Lima (União Brasil). Ele é reconhecido por seu apoio a Jair Bolsonaro e por medidas controversas, como incentivo ao garimpo e o fortalecimento do agronegócio no Amazonas.[1] Importante frisar também que não há participação e controle social no Sistema Encontro das Águas, requisitos da comunicação pública, segundo parâmetros internacionais da Unesco.
Para entender a dimensão do que significa transferir a mais importante emissora de rádio da tríplice fronteira, resgatamos entrevista concedida na última semana de novembro pelo Xamã do povo Yanomami, Davi Kopenawa, para o programa Revista Brasil, da Rádio Nacional do Alto do Solimões. Nela, ele detalhou a uma carta entregue por ele à ministra do Supremo Tribunal Federal (STF), Cármen Lúcia, na qual relatava a grave situação dos indígenas e falou dos graves impactos do garimpo, que polui rios, derruba matas para instalação de maquinário e espalha doenças.
Será que vozes como de Kopenawa continuarão a ter espaço agora que a Rádio Nacional passa a ser Encontro das Águas?
Localizada em Tabatinga, a Rádio Nacional do Alto Solimões interliga, atualmente, nove municípios e serve de ponte de informação e comunicação à população urbana, povos indígenas e comunidades tradicionais da Tríplice Fronteira. Criada em 2006, atendendo a uma antiga reivindicação da população local, a emissora é caçula da EBC e surgiu após um encontro de lideranças da região cobrando uma rádio que transmitisse em português, divulgasse informações do Brasil, regionais, locais e prestasse serviço em uma região com pouca cobertura de veículos de comunicação brasileiros e onde a internet não funciona bem.
A iniciativa foi viabilizada a partir de parceria com o Ministério da Integração Nacional e alcança cerca de 60 milhões de pessoas entre Brasil, Peru e Colômbia, segundo o site da EBC. A emissora era considerada estratégica, por sua localização, em uma região conflagrada, como aponta o líder indígena, por conta do garimpo e do tráfico de drogas, que vem sendo bastante denunciado após as mortes de Bruno Pereira e Dom Phillips.
Pela localização da emissora pública e seu alcance já poderíamos dizer que ela é fundamental, com papel de informar sobre ações do governo para proteger a população e sobre as demais agendas nacionais para a região, em um cenário em que a desinformação tem levado aos parlamentos representantes contra os povos tradicionais, os direitos sociais, o meio ambiente, mas aliados de grandes grupos criminosos.
Muitas críticas podem ser feitas ao governo de Jair Bolsonaro, que aparelhou a EBC e a utilizou para defender teses estapafúrdias, como a fraude nas urnas eletrônicas e negar a gravidade da Covid-19, inclusive, sobre a população indígena, conforme denunciado em dossiês sobre censura elaborados pelos jornalistas da EBC e seus sindicatos. Porém, os militares, cientes do papel estratégico da emissora, fortaleceram a estação. E jamais a doariam de mão beijada para um governo de oposição, como faz o PT e o preposto do ministro Paulo Pimenta, Jeansley Lima, presidente da EBC.
O momento é, ao contrário, de fortalecer a Rádio Nacional do Alto Solimões e parcerias com a sociedade civil, sobretudo pensando em envolver a população da Amazônia que terá os olhos do mundo sobre si nos debates da COP-30, em 2025.
A cessão é uma grande perda para o sistema público, previsto no Artigo 223 da Constituição Federal, e uma contradição, considerando o projeto de expansão da Rede Nacional de Comunicação Pública, da EBC, que só tem conseguido atrair emissoras de rádio educativas, vinculadas às universidades e instituições de ensino, muitas operando com dificuldade, na web, ou em fase de implantação, longe de entrar no ar.
Recentemente, as rádios da EBC na Amazônia foram tema de debate entre a Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom) e a EBC. Especialistas confirmaram o potencial das emissoras para estimular o desenvolvimento e combater as desigualdades na região. No evento, o pesquisador em mídia digital André Barbosa Filho, do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (Ibict), defendeu que o potencial do rádio não se alterou com as revoluções tecnológicas e permanece estratégico. “O que importa é o público que está ouvindo”, disse na ocasião.
Ao celebrar o Dia Mundial do Rádio, o coordenador de Comunicação e Informação do Escritório da Unesco no Brasil, Adauto Cândido Soares, ressaltou: “o discurso de ódio ganhou muita visibilidade e se expandiu nas mídias digitais. O rádio pode ser usado para dirimir dúvidas, amenizar posições, promover o debate, trazer o contraponto porque o rádio tem a confiança de um público cativo, que é imenso”.
Frente em Defesa da EBC e da Comunicação Pública é um coletivo composto por movimentos sociais, entidades, academia e trabalhadores/as da EBC.
*Aproveitamos para lembrar os dois empregados da EBC, Osman de Oliveira Melo e Francisco Alves de Oliveira, que morreram no acidente da Gol, em 2006. Eles voltavam de Tabatinga, onde trabalharam na instalação do transmissor da emissora.