Procurador da República que implorou pra defender povo indígena, consegue suspender proibição por conflito de atribuições

Procurador da República que implorou pra defender povo indígena, consegue suspender proibição por conflito de atribuições

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O Conselho Superior do Ministério Público Federal, apreciou o recurso e decidiu suspender a portaria que impedia o procurador da república em Rondônia, Reginaldo Trindade, de continuar o trabalho a que se dedica há 12 anos em defesa do Povo Cinta Larga.

Até que a Câmara de Coordenação e Revisão e a Corregedoria possam ir a Rondônia e propor uma solução para o caso, o procurador que insistiu para continuar trabalhando pela causa indígena, não poderá ser afastado.

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Leia mais sobre o caso aqui: http://blogdalucianaoliveira.com.br/blog/2016/08/23/procurador-da-republica-em-ro-que-defende-indigenas-luta-pra-nao-ser-substituido-por-economia-de-combustivel/

A sustenção oral do Procurador da República:

Quantos procuradores já vieram aqui pedir para trabalhar?

Quantos procuradores já se apresentaram perante esse Conselho oferecendo ajuda em causas que mereciam?

E não nos referimos a trabalhos do porte da Lavajato, Satyagraha ou Mensalão – atuações que deram, e ainda dão, publicidade e que todo dia são exibidos no Jornal Nacional.

Estamos falando de uma questão, conquanto grave, esquecida lá nos rincões da Amazônia Meridional.

É uma causa que não rende ibope; que a televisão não retrata; que poucos sabem que existe.

Os que a abraçam raramente são laureados. Ao revés, são perseguidos. Acabam, invariavelmente, contaminados pelo preconceito que vitimiza os seres humanos que buscam proteger. Vivem no limite. Absolutamente no limite. Arriscam tudo!

A única satisfação que alcançam é o dever cumprido. Quando ele é cumprido.

Senhor Presidente
Senhores Conselheiros
Senhor Relator

O Povo Indígena Cinta Larga teve descoberto em suas terras, por volta de 1999/2000, um garimpo de diamantes. Nunca mais teve paz. O conflito decorrente vitimou dezenas de pessoas. Apenas em abril de 2004 vinte e nove garimpeiros foram mortos.

A questão é tão grave que já foi alvo de uma Força-Tarefa de procuradores de primeira grandeza; já foi acompanhada por um Grupo de Trabalho no âmbito do então CDDPH que era composto, inclusive, por Dalmo Dallari e Flávia Piovesan; já esteve em cinco casos emblemáticos num GT Intercameral da 2ª, 4ª e 6ª CCRs.

O problema hoje, embora ignorado e relegado, está mais grave que era há doze anos. O mesmo contexto que antecedeu e até provocou aquela tragédia e várias outras ainda se faz presente: diamantes, índios passando privações, Governo omisso e milhares de pessoas querendo roubar a riqueza.

Ademais, hoje tudo que mais pode afligir a alma e o coração humanos estão presentes na aldeia: bebidas alcoólicas, armas de fogo, drogas, prostituição, estupros, pedofilia.

Em 2015, pelo menos em duas ocasiões distintas, estivemos bem perto de ver reeditada a tragédia de abril de 2004, quiçá em dimensões muito mais sangrentas.

O Povo Cinta Larga está, assim, absolutamente acuado entre o assédio irresistível do crime organizado e a descarada omissão do poder público. Última trincheira de resistência é o trabalho do Ministério Público Federal.

Trabalhamos na questão há mais de doze anos. Começamos bem na época da morte dos 29 garimpeiros. O trabalho realizado provavelmente deve encontrar poucos paralelos em matéria indígena: 12 ações civis públicas ajuizadas, 15 recomendações expedidas, mais de 350 reuniões realizadas, várias audiências públicas etc., etc., etc.

Mesmo depois da criação de PRMs em Rondônia, o trabalho continuou a cargo da unidade da Capital. A gravidade do assunto e a altíssima rotatividade de procuradores na Região Norte foram alguns dos argumentos utilizados para justificar a excepcional repartição de serviço.

Isso foi decidido, pela primeira vez, em setembro de 2006 e a decisão tem sido replicada, desde então, por todas as turmas de procuradores que trabalharam em Rondônia, totalizando mais de dez ocasiões diferentes. Esse Conselho Superior mesmo homologou essa divisão várias vezes, dando-a conforme as regras da Instituição.

Os mesmos procuradores que agora se voltam contra a permanência do caso na capital chancelaram essa repartição de serviço em 2014.

A portaria, que está sob julgamento, proíbe-nos de trabalhar na Questão Cinta Larga. Veda a prática de qualquer ato. Determina a remessa de todo o acervo para Vilhena em 15 dias.

Suplicamos que não se apeguem à argumentação, de quem quer que seja, no sentido de que o normativo excepciona a possibilidade de continuarmos atuando na causa, porque isso não é verdade.

Os procuradores já até nos ameaçaram representar perante a Corregedoria, caso ousemos contrariar a norma guerreada.

Ora, qual a razão para proibir um procurador de auxiliar numa causa que reclama ajuda de muitos?

Não possuíamos e nem pretendemos possuir exclusividade no caso Cinta Larga. A questão estava a cargo da capital e da PRM de Vilhena e, em nossa compreensão, quanto mais procuradores estiverem atuando no gravíssimo caso, melhor.

Deixar que toda a questão fique sob a exclusiva responsabilidade da PRM de Vilhena é o melhor caminho? Como fica o princípio insculpido na Resolução 104 desse Conselho, que manda que, na medida do possível, não exista exclusividade de tema ou matéria por um único membro do MPF?

Essa norma deveria ser ainda mais reverenciada na temática indígena, justamente porque a própria 6ª CCR recomenda que o mesmo procurador não cumule o trabalho criminal com o protetivo.

Como ficará isso? O mesmo procurador vai acusar num dia e proteger no outro? Pedirá, eventualmente, a prisão de índios e depois irá à aldeia ouvir a comunidade????

A principal razão que invocam é o festejado princípio do Promotor Natural, calcado exclusivamente no critério territorial.

No entanto, esse princípio, que alguns alçam à condição de verdadeiro dogma inexpugnável do nosso trabalho, não tem esse prestígio todo na matéria indígena.

E não há de ter no presente caso.

Mesmo porque a questão não é tão singela quanto esses procuradores querem deixar transparecer.

O território tradicional Cinta Larga está encravado no meio de três unidades distintas do MPF: Vilhena e Ji-Paraná, no lado de Rondônia, e Juína, no Estado de Mato Grosso.

Assim, quem teria atribuição, então? Em que medida seria essa atribuição?

Quem defenderia o Povo Cinta Larga contra toda sorte de opressões????

A questão indígena não reconhece fronteiras. Pelo menos, não as nossas.

Umas das grandes dificuldades de se trabalhar com índios no Brasil é a lacuna legislativa. Não existem normas adequadas para balizar as decisões a serem adotadas. Normalmente, a lei é feita por brancos, para regrar a vida dos brancos. Pouco se pensa nos indígenas. Quando se pensa…

Assim, o desafio é conciliar as leis normais à realidade indígena.

Todos diriam que o princípio territorial deveria ser observado. Mas a problemática indígena é diferente. A questão que se apresenta, mais ainda! Dotada de peculiaridades absurdamente singulares, aqui parcialmente retratadas, ela impõe que ao menos consideremos agir diversamente.

E se tem uma Instituição que pode ir além de regras comezinhas; que pode ousar fazer Justiça, ainda que o cenário legal não esteja completamente claro; essa Instituição se chama Ministério Público Federal.

Precisamos urgentemente ir além. Precisamos ousar. Precisamos fazer jus à majestade com que o constituinte nos brindou. Não devemos temer a grandeza – porque a sociedade está contando com ela.

O procurador de Vilhena já confidenciou que tenciona ser transferido na próxima remoção.

Logo, a controvérsia submetida ao elevado crivo de Vossas Excelências não envolve afastar um procurador para deixar outro agir, mas tirar um que quer trabalhar e deixar o problema no limbo, sujeito ao sabor dos vários procuradores que passarão por aquela pequena unidade ano após ano.

Digam-me, então, se é possível esperar que esses tantos procuradores que passarão por Vilhena e lá permanecerão apenas enquanto o próximo concurso de remoção não tiver lugar (um ano, dois no máximo) possam dar tratamento condizente a uma causa dessa envergadura!

Digam-me se é possível que um procurador de PRM, que tem sob sua responsabilidade o trabalho de toda uma unidade, nas suas mais diversas e difíceis áreas, com poucos servidores, com audiências, processos judiciais e inquéritos policiais por atender, cuidar de um caso que envolve, até agora, cerca de 250 volumes de documentos!

Digam-me se é possível relegar um trabalho, que o Grande Cláudio Fonteles sentenciou há mais de doze anos que ninguém conseguia resolver, a uma tal situação!!!

Digam-me se é justo, não comigo, que trabalhei nessa causa quase um terço da minha vida, mas com o Povo Cinta Larga, que está assistindo, atônito, à possibilidade de ver suas esperanças sucumbirem. Impotente. Esquecido. Ultrajado.

A comunidade indígena moveu montanhas para mandar um representante perante esse augusto colegiado e, através dele, implorar para que sua opinião tivesse algum valor.

Os índios, parte mais interessada no assunto, sequer foram ouvidos acerca da mudança. Não deveriam sê-lo? Como fica o princípio do consentimento livre, prévio e informado – tão caro em matéria indígena e mencionado expressamente em vários tratados internacionais a que o Brasil aderiu???

Os clamores do Povo Cinta Larga continuarão confinados lá na Selva Amazônica, esquecidos e desprezados por um Governo indiferente, uma Mãe-Funai impotente e, quem sabe, por um MPF que não ousou passar dos limites…

Atualmente, estamos em nosso melhor momento. Conseguimos articular uma rede de parcerias, intitulada GRUPO CLAMOR – Cinta Larga: Amigos em Movimento pelo Resgate, que já congrega dezenas de boas almas, dentre professores, estudantes e representantes das mais diversas instituições públicas e particulares.

Muitos componentes dessa parceria manifestaram, por cartas e declarações, sua perplexidade diante de uma alteração tão repentina depois de tantos anos e, sobretudo, sua preocupação quanto ao futuro da comunidade.

Graças ao GRUPO CLAMOR conseguimos realizar vários feitos que seriam impensáveis se sozinhos estivéssemos. Dentre eles, mencione-se a Caravana da Esperança, quando levamos cerca de 300 autoridades à aldeia do Povo Cinta Larga (Governador, vice-Governador, dois senadores e quase vinte deputados aí incluídos).

Elenque-se, também, a celebração de parcerias com 17 faculdades de Rondônia, através das quais conseguimos 116 bolsas gratuitas integrais para o Povo Cinta Larga. A proposta é transformar a vida da comunidade pelo mais idôneo instrumento de transformação já criado pelo engenho humano.

Essa corrente do bem cresce a cada dia que passa. Se persistirá assim ou se morrerá melancólica e prematuramente, esse Conselho é que vai decidir. Nesta manhã.

Idealizamos duas estratégias que, se executadas da forma como imaginamos, afastarão, de vez, o Povo Cinta Larga de qualquer atividade escusa, provocando uma verdadeira revolução numa história de descaso e indignidade.

Os indígenas depositam suas maiores esperanças nesse trabalho. Sabem que se trata, bem provavelmente, da última tábua da salvação. Sabem que é a única forma de demonstrar que Cláudio Fonteles estava enganado…

Assim, apelamos a esse Augusto Conselho: Deixem-nos terminar o que começamos. Deixem-nos terminar o que começamos há doze anos!

Deixem-nos ajudar uma comunidade indígena que precisa. Não permitam que a tábua da salvação faça pouco caso do sofrimento da comunidade…

A Força-Tarefa de procuradores funcionou nos anos de 2002 ou 2003. Se o seu trabalho persistisse talvez tivesse impedido a tragédia de 2004.

Estamos na iminência de novas tragédias. Atreveríamos a dizer que nosso trabalho é que tem impedido o barril de pólvora explodir, justamente porque serve de esperança para os índios.

É um oásis num deserto de indiferenças, incompreensões, desesperanças.

Serve, quando menos, para demonstrar que alguém se preocupa verdadeiramente com eles. Que uma Instituição, ao menos uma, está disposta a fazer o que for preciso para ajudá-los a construir um futuro diferente.

Sejamos ousados. Não aguardemos uma nova tragédia para constituir forças-tarefas ou agir. Ajamos para evitar novas tragédias…

Procuradores devem dar as mãos, não as costas!

Nessa hora mais escura, em que confrontamos a maior ameaça ao trabalho de uma vida, aguardamos, com serenidade e confiança, a Justiça proveniente desse Egrégio Conselho.

Está em suas mãos!

Brasília/DF, 06 de Setembro de 2016.
Véspera do Aniversário da Independência do Brasil

REGINALDO TRINDADE
Procurador da República

O cacique Marcelo Cinta Larga acompanhou a sessão que julgou o recurso.

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