Menos cinismo com a democracia, por favor

Menos cinismo com a democracia, por favor

direta

Adversários das Diretas-Já poderiam contribuir para a criação de um ambiente político menos indecente se evitassem fazer do cinismo seu argumento principal.

No 247
Paulo Moreira

Você sabe do que se trata. Sempre que se discute, na GloboNews ou numa mesa de bar, a possível queda de Michel Temer da presidência, assiste-se a uma cena previsível.

Os adversários das diretas-já — muito mais numerosos na GloboNews do que nos botequins — fazem expressão de simulada sabedoria, com gravidade na voz, para lembrar que, quando se trata de cumprir um mandato presidencial num período inferior a dois anos, o artigo 81 da Constituição prevê eleição indireta. O tom é de quem acabou de ouvir uma revelação divina, à qual os presentes devem render-se de cabeça baixa. Será que isso encerra o debate?

Claro que não.

A Reforma da Previdência, principal batalha política da coalização golpista, também contraria a Constituição. Para ser aprovada, o governo terá de conseguir três quintos dos votos da Câmara e do Senado. Isso não tem impedido o Planalto travar uma batalha desleal e sangrenta, onde as chantagens se multiplicam, para garantir que seja aprovada de qualquer maneira. Alguém se lembrou de seu caráter inconstitucional?

Emenda que criou o teto dos gastos contrariava a carta de 1988 e só foi aprovada porque, pagando a conta do apoio do mercado ao golpe, Temer-Meirelles conseguiram os votos necessários. Em vários estágios de preparação, a coalizão já possui outras três emendas constitucionais no forno.

Para racionalizar o debate, é bom lembrar um dado crucial. A Constituição já foi emendada 105 vezes de 1988 para cá. Um placar significativo, numa carta com 250 artigos e 80 emendas.

Outro aspecto ajuda a demonstrar que o esforço para sacralizar um debate político não passa de uma tentativa de fugir de uma discussão necessária sobre os fundamentos democráticos de nosso regime político. Envolve aquilo que os estudiosos definem como “espírito” da Constituição.

Não há nenhum valor sobrenatural aqui. São aquelas verdades que não foram escritas, mas transparecem a partir de uma interpretação lógica e honesta do texto, necessária quando surge um contexto novo — como agora — para discutir uma decisão já envelhecida.

A prova de que a urna é um instrumento essencial da Carta de 88, uma noção fortíssima, se encontra no parágrafo 4 do artigo 60. Ali são listadas as únicas quatro clausulas pétreas, aquelas que não podem ser modificadas nem por emenda constitucional. Não por acaso, a primeira é o “voto direto, secreto e universal”. (As outras são a Republica Federativa, a separação dos Poderes, os direitos e garantias individuais). A Constituição também diz que o voto deve ser “periódico”. Um traço que cabe recordar agora, quando se recorda que a escolha do sucessor de Temer, pelo Congresso, representa uma segunda ilegitimidade acumulada.

(O mesmo “espírito da Constituição” permite apontar o caráter estranho, constitucionalmente incoerente, da proposta de reforma da Previdência e da emenda que congelou os gastos públicos por 20 anos. No artigo terceiro, a Constituição emprega termos absolutos, como “erradicação” da miséria, da pobreza e a desigualdade, para definir seus “objetivos fundamentais”. Também inclui o “desenvolvimento nacional” — incompatível com o congelamento de gastos públicos — como um “objetivo fundamental” da República. Isso significa que mesmo um governo perversamente reacionário como Temer-Meirelles têm obrigação constitucional zelar pelos mais pobres e para regiões menos desenvolvidas, em vez de entregar os direitos dos trabalhadores e as riquezas nacionais para aventureiros de todo tipo).

O debate, como se vê, é político e assim deve ser encarado. Quem combate a realização de diretas-já se esconde atrás de artigo da Constituição — sujeito a mudanças por decisão do Congresso — para escapar do constrangimento de dizer, em público, que não quer que a população tenha o direito de escolher o presidente. Num país onde o desprestígio do Congresso atingiu um patamar de abismo, essa é uma postura de alto risco, em qualquer ambiente.

No Brasil de 2017, seu sentido é ainda mais escancarado. Admite-se a queda de Temer — desde que as reformas sigam seu curso, intocáveis. O cálculo é simples: mesmo que uma chapa João Pedro Stédile-Guilherme Boulos seja eleita em 2018, pouco poderão fazer — pois terão as mãos amarradas.

Como se sabe, os adversários da democracia trabalham sem descanso — inclusive no futuro.

Em conversas com pessoas de convicções democráticas reais, é possível ouvir um receio justificado. Teme-se que Temer (ou Tremer, como tem sido frequentemente designado, por razões políticas óbvias) até possa cair. A pergunta é como garantir a realização de diretas, a seguir.

Minha opinião é a seguinte. Ninguém pode adivinhar como uma nação de 200 milhões de habitantes, que enfrenta o pior desemprego de sua história e um processo criminoso de empobrecimento irá reagir diante da queda de um presidente que se tornou alvo de desprezo e raiva num grau que nunca se viu antes.

Sempre será possível encontrar profetas capazes de dizer que tudo seguirá igualzinho ao que se passava na véspera. Neste cenário, todos ficarão bem comportados em casa, sentados diante da TV Globo, até que o presidente da Câmara (como ele se chama mesmo?) anuncie o nome do novo presidente. É o retorno do retorno. Novelinha que não dá nem Netflix.

Outra hipótese é de um momento de vitória e júbilo, num desses processos históricos que só o movimento de trabalhadores e da população sabe construir, que se forma quando luta política atinge um patamar tão alto pode ser traduzido pela boa poesia que vez por outra aparece em nossa música popular — como a festa anunciada em Porta Estandarte, de Geraldo Vandré. Minha opinião é que é preciso estar preparado para isso, inclusive debatendo caminhos legais como a emenda já em discussão na Câmara. Cabe, na verdade, entender a lição de um verso de Vandré naquela música, lançada em 1979, quando já era possível enxergar luzes da democracia no pesadelo da ditadura:

“Deixa que a tua certeza se faça do povo a canção/

para que o povo cantando teu canto ele não seja em vão.”

Essa é a discussão.

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