No The Intercept, por Tomás Chiaverini – “FOI AQUI QUE ele caiu”, disse o menino índio de oito ou nove anos, mostrando uma mancha vemelho-escuro sobre o capim. Ele havia me guiado até ali por uma trilha, apontando um rastro de gotas de sangue enquanto caminhava. O wapixana baleado, irmão do cacique, havia sido levado ao hospital na caçamba de uma caminhonete. Estava internado em Boa Vista, em estado grave, mas sobreviveria.
Isso foi em novembro de 2004. Roraima vivia picos de tensão, que se originavam numa região conhecida como Raposa Serra do Sol, na fronteira com a Guiana e a Venezuela. Dali a alguns meses, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinaria um decreto homologando a área como uma reserva indígena contínua – incluindo duas cidades, de onde os não-índios seriam retirados. Mas, naquele momento, a expectativa pela decisão espalhava um clima tenso pelo estado, que se materializava em recorrentes conflitos.
Cerca de cinco horas de estrada de terra separavam a aldeia onde havia ocorrido o ataque, da capital, Boa Vista. O motorista, um indígena wapixana na casa dos vinte anos, mantinha o ponteiro do velocímetro sempre entre os 120 e 160. No banco do lado, o colega dele se alternava entre sintonizar alguma canção de brega nas rádios locais e esquadrinhar o horizonte, em busca dos caminhões dos “arrozeiros”.
“Olha ali, ali, ali!”, dizia a cada dez ou vinte minutos, apontado para uma moita, uma elevação, ou uma miragem de calor na planície de cerrado que cobre o norte de Roraima. Depois ria e olhava pra trás, de um jeito que não deixava claro se estava só querendo me assustar, ou se realmente se preocupava em topar com os capangas dos fazendeiros plantadores de arroz, que naquela madrugada tinham queimado quatro aldeias e baleado um indígena.
Os fazendeiros, boa parte vinda da região Sul do país, tinham se assentado ali na década de 1970 para plantar arroz. Com o tempo, muitos indígenas locais passaram a trabalhar nessas fazendas e se voltaram contra a reserva. Do outro lado, lideranças ameaçavam descer das serras ao redor do monte Roraima com arco-e-flecha e iniciar uma guerra civil.
Naquele fim de tarde em que visitamos as quatro aldeias destruídas, distribuindo redes e mantimentos para os moradores locais passarem as próximas noites, a possibilidade de um confronto aberto não era desprezível. Havia uma raiva contida no ar e grupos de indígenas, assustados e enraivecidos, postavam-se entre a fumaça, ao lado das pilha de pedras em que suas casas haviam sido transformadas após uma ação de 40 homens armados, montados em caminhões de arroz e tratores. As fotos que ilustram este texto foram tiradas naquele fim de tarde.
Alguns dias depois, já em Boa Vista, perguntei a um dos advogados dos fazendeiros, o que ele achava daquela situação. O nome dele, lamentavelmente, se perdeu na memória, mas era um homem alto, calvo, de pele muito branca e sotaque gaúcho. Usava camisa bege clara e óculos de aros dourados. “Nós chegamos aqui primeiro”, ele resumiu num tom tranquilo que lhe conferia ares paroquiais.
A frase soou absurda. Como aquele homem, com aquela cara de alemão, podia dizer que tinha chegado ali antes dos índios? Como algum descendente de europeu, qualquer um, em qualquer parte de um país que por séculos havia promovido o genocídio de incontáveis etnias, podia usar um argumento daqueles? Apesar do aparente disparate, ali, naquela justificativa, estava o germe de uma tese que hoje se tornou uma das maiores ameaças ao direito dos povos indígenas e quilombolas do Brasil: o marco temporal.
A tese é o principal argumento dos ruralistas contra a demarcação de terras indígenas e de descendentes de escravos e foi sedimentada em 2009, justamente durante um julgamento de ações que pediam a revisão da homologação da Raposa Serra do Sol. Na ocasião, o Supremo confirmou a reserva como de direito dos indígenas, o que soou como uma vitória. Mas, ao versar sobre o direito tradicional às terras, estabeleceu um marco temporal para que a posse fosse válida: 5 de outubro de 1988, a data em que a Constituição foi promulgada.
Marco Temporal
Não há nada no artigo 231 (que regulamenta o direitos dos indígenas à terra) que explicite essa tese. Além disso, na época do julgamento de 2009, os ministros deixaram claro que o decidido ali estava restrito à Raposa Serra do Sol. Ainda assim tornou-se recorrente a tese de que uma terra só poderia ser considerada de direito dos indígenas se estivesse comprovadamente ocupada por eles em outubro de 1988.
O argumento é considerado absurdo por juristas e antropólogos por vários motivos. O principal deles, claro, é o de que essas populações vêm sendo expulsas de seus territórios desde que a primeira nau portuguesa ancorou no litoral baiano. Ainda assim, sempre que alguém entra com um processo contra a demarcação de terras indígenas, lá está o marco temporal.
Ele esteve presente, por exemplo, no julgamento ocorrido na manhã da última quarta (16), no Supremo Tribunal Federal, em que o estado do Mato Grosso pedia indenização pela demarcação de terras indígenas em seu território. A importância do julgamento foi além das questões atuais e sinalizou como a Corte vai se posicionar diante de casos semelhantes, em um momento em que o governo Federal desfere ataques violentos contra indígenas e quilombolas.
No dia 19 de julho, por exemplo, o presidente Michel Temer assinou um parecer da Advocacia Geral da União (AGU) determinando que todos os processos referentes a terras indígenas sigam o que foi decidido no caso de Raposa Serra do Sol. Incluindo o marco temporal. A canetada do presidente foi um afago à bancada ruralista, que o ajudou a enterrar na câmara a denúncia de corrupção feita pela Procuradoria Geral da República contra Temer.
Apesar dos esforços do Executivo para legislar em favor de seus apoiadores, no julgamento dessa quarta, o Supremo decidiu por unanimidade (8 votos a 0) em favor dos indígenas.
Houve os arroubos de sempre, com Gilmar Mendes discorrendo sobre o perigo de índios tomarem Copacabana. Mas, para além deles, o ministro Luis Roberto Barroso defendeu o direito de retorno para os índios expulsos de suas terras. E que o marco temporal só possa ser usado quando os povos tradicionais tiverem saído espontaneamente e deixado claro terem perdido o vínculo com o território.
“O resultado nos dá bastante esperança e alento sobre como a questão do marco temporal será tratada daqui pra frente pelo Supremo”, me disse, logo após o julgamento, a advogada do Instituto Socioambiental (ISA) Juliana de Paula Batista.
Em outras palavras, o STF mandou uma clara mensagem ao governo e à bancada ruralista de que, ao menos por enquanto, não será tão simples usar a tese do advogado de Boa Vista de que “nós chegamos aqui primeiro”.
Foto em destaque: Criança em comunidade indígena ao norte de Boa Vista (RR), em 2004, quando foi completamente destruída