Na Carta Capital – A ocupação ilegal de terras no Brasil é mais regra do que exceção. Numerosos estudos mostram que desde a criação legal da propriedade privada da terra, em 1850, até os dias de hoje persiste a indisciplina na documentação de registros o que tem permitido, por décadas, a apropriação privada de terras devolutas ou públicas.
A imprecisão nos limites de propriedades acontecem até mesmo em grandes metrópoles como São Paulo. Várias escrituras sobre o mesmo pedaço de terra e deslocamento espacial da “propriedade registrada” são exemplos evidenciados em extensa bibliografia e arquivos oficiais.
Até hoje, 68 anos após promulgada a lei de terras, o Patrimônio da União não está devidamente cadastrado, em que pese uma sucessão histórica de leis e decretos com essa finalidade.
Propriedade da terra e poder político/econômico e social dos homens brancos sempre andaram juntos. Apesar da abundância de terras no Brasil, as camadas populares, em especial os negros, após a libertação dos escravos, nunca tiveram acesso regular a ela.
O Brasil se urbanizou e se industrializou durante o século XX. Nas cidades, nem Estado nem mercado responderam às necessidades de assentamento residencial e urbano de uma população que passou de 17,4 milhões em 1900 para 190,7 milhões em 2010.
Nossas metrópoles são constituídas de domicílios ilegais, devido à ilegalidade fundiária, numa proporção que varia entre 60% das moradias (no Norte e Nordeste) a 17% (no Sul).
Em contraste com essa realidade, o Brasil tem um arcabouço legal, relativo ao espaço urbano e ambiental, que está entre os mais avançados do mundo. Este arcabouço, muito frequentemente, é desconhecido pelos governos, legislativos e judiciários. Aliás, não é matéria obrigatória nas Faculdades de Direito.
Apenas o desconhecimento da realidade urbana brasileira permite apontar o MTST ou demais movimentos sociais demandantes de moradia como os grandes vilões de um processo secular, contínuo, surdo, predatório de ocupação do solo sem lei ou sem Estado.
Na busca de um lugar para morar, condição indispensável para a vida humana, e sem qualquer alternativa legal, grande parte da população ocupa áreas ambientalmente frágeis: APPs (Áreas de Proteção Permanente), APAs (Áreas de Proteção Ambiental), APMs (Áreas de Proteção de Mananciais.
Na Área de Proteção dos Mananciais, no sul da metrópole paulistana, moram mais de 1 milhão de habitantes, contrariando a lei que pretende preservar a água que a cidade consome. Sem alternativas, são constrangidos a ocupar.
Há ainda as áreas onde vige um Estado paralelo. As milícias dominam a produção de loteamentos e moradias, a distribuição do gás, a distribuição da água, o transporte de massa por meio de vans, tudo ilegalmente, em vastas áreas da metrópole do Rio de Janeiro.
Os imóveis ociosos, ocupados por movimentos organizados, constituem uma espécie de ponta do iceberg, ponta esta que anuncia o tamanho do problema que permanece invisível. Em muitos casos prestam até mesmo um serviço público, como o das mulheres fortes e dignas que administram ocupações que fornecem abrigo e serviços (segurança, portaria, água, eletricidade, creche) a preços acessíveis.
Alguns documentários premiados, como o “Era Hotel Cambridge”, mostram essas ocupações em edifícios antes ociosos (que, nessa condição, contrariam a função social da propriedade prevista na Constituição Federal, na lei Federal Estatuto da Cidade e nos Planos Diretores) no Centro da cidade de São Paulo.
Apesar do significativo investimento do Minha Casa, Minha Vida entre 2009 e 2015 e a construção de mais de 4 milhões de moradias, o déficit habitacional cresceu no período.
Devido à falta de regulação das terras urbanas e do mercado imobiliário, o preço da moradia e dos aluguéis cresceram muito nesse período.
Em São Paulo, o preço do metro quadrado dos imóveis subiu 225%. No Rio de Janeiro, a alta foi de 260%, segundo a FIPE ZAP, o que nos permite constatar um verdadeiro ataque especulativo nas cidades.
O acesso à moradia formal está mais difícil hoje, agravado pelo desemprego e o baixo crescimento da economia.
Enfrentar a anarquia fundiária presentes do campo e nas cidades do Brasil exige muito mais coragem e esforço do que simplesmente culpar as vítimas. Conhecer melhor as cidades e aplicar a legislação urbanística seria um bom começo.