Sistema de monitoramento da Amazônia é referência mundial, garante ex-diretor do Inpe

Sistema de monitoramento da Amazônia é referência mundial, garante ex-diretor do Inpe

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Cientistas rebatem Bolsonaro: controle brasileiro via satélite é preciso e não superestima dados de desmatamento

Pedro Biondi
Brasil de Fato

No enfrentamento com o presidente Jair Bolsonaro (PSL) em torno dos dados do desmatamento, o diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Ricardo Galvão, perdeu o cargo, para o qual restava mais um ano e meio de mandato.

A medida autoritária conseguiu, no entanto, colocar a polêmica no centro do debate público. Dois cientistas mundialmente conhecidos que fizeram carreira no Inpe, Carlos Nobre e Gilberto Câmara, reafirmam, em entrevista ao Brasil de Fato, a excelência brasileira na produção e na análise de dados de satélite. Por outro lado, denunciam o caráter anacrônico da indústria do desmatamento.

De forma resumida: Bolsonaro e seus ministros do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e da Segurança Institucional, Augusto Heleno, vêm reiteradamente colocando em dúvida a confiabilidade do sistema de monitoramento por satélite brasileiro, pioneiro no mundo e em aperfeiçoamento há 30 anos.

::Em julho, áreas com alerta de desmatamento aumentaram 278% em relação a 2018::

O governante e seus escolhidos tratam os números do instituto ligado ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Comunicações e Inovações (MCTIC) como terrorismo ambiental, e seus divulgadores como “maus brasileiros”.

“O Brasil é 1º mundo nessa área”, atesta Gilberto Câmara, cientista da computação que responde pelo projeto GEO, rede global de órgãos governamentais, instituições acadêmicas e empresas de 105 países em busca de soluções inovadoras para gestão de informações.

“O monitoramento feito aí tem o respeito de todos países que integram o GEO. Todo o mundo conhece a seriedade do trabalho do Inpe. Ela é reconhecida no Japão, na China, nos Estados Unidos, na Rússia… É uma coisa que ninguém questiona”, argumenta.

GEO é sigla para Group on Earth Observations (Grupo de Observações da Terra), além de significar “terra” em grego. Ligado à Organização das Nações Unidas (ONU), o organismo promove o compartilhamento de dados e modelos focados no desenvolvimento sustentável e no enfrentamento das mudanças do clima e desastres naturais.

De acordo com Câmara, o destaque do Brasil e do Inpe no sensoriamento ambiental não se restringe à parte operacional, do uso e calibragem dos satélites – também passa pela análise de imagens e pela formação de pessoal na área.

Ele é atualmente um dos colaboradores do instituto sediado em São José dos Campos (SP), fez seu mestrado e doutorado ali, foi chefe de Processamento de Imagens, coordenador de Observação da Terra e diretor-geral por dois mandatos (2005-2012).

Apontado como principal responsável pela criação do sistema de alertas de desmatamento Deter, Câmara também ampliou o Prodes, projeto de monitoramento permanente que mantém uma série histórica de taxas anuais desde 1988. Em sua gestão, promoveu uma política de acesso gratuito e software de código aberto, firmando o Inpe como um grande centro distribuidor de imagens satelitais.

Segundo o cientista, as taxas divulgadas por esses sistemas podem ser compreendidas como índices de “inflação ambiental”, uma vez que servem de parâmetro para a comunidade nacional e internacional acompanhar o empenho brasileiro em seus compromissos de preservação ambiental.

Em defesa da ciência

“Pode demorar, mas o método científico sempre triunfa. A história mostra. A humanidade avança porque a gente inventa um jeito de entender a natureza de forma sistemática”, afirma Câmara.

O meio científico saiu em peso na defesa do diretor Ricardo Galvão, demitido por Bolsonaro. O físico de 71 anos é professor emérito da Universidade de São Paulo (USP), dirigiu o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), também subordinado ao MCTIC, e presidiu a Sociedade Brasileira de Física (SBF).

Entre muitos outros, ex-diretor do Inpe recebeu o apoio das duas principais entidades científicas do país, a Academia Brasileira de Ciências (ABC) e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), e do Laboratório de Ciências Biosféricas da Nasa, a agência especial dos EUA.

Em debate com o ministro Salles na GloboNews, após a demissão, o físico e engenheiro questionou a briga do governo Bolsonaro com os números e a ideia fixa em substituir a ferramenta de monitoramento ambiental.

Do outro lado da mesa, o ministro do Meio Ambiente insistiu na tese de aparelhamento ideológico das instituições e acusou Galvão de ter desrespeitado o presidente.

O método de escolha da direção dos dos institutos vinculados ao MCTIC é semelhante ao adotado pelas universidades federais, por meio de lista tríplice. Tradicionalmente, o ministro escolhe o primeiro colocado.

Após a saída de Galvão, o oficial da Força Aérea Darcton Policarpo Damião assumiu interinamente o Inpe. Para a escolha do substituto definitivo, Bolsonaro e o ministro Marcos Pontes prometeram cumprir o rito.

Damião é notório seguidor da linha ideológica do presidente, tendo se manifestado nas redes sociais com postagens de petições pela cassação de registro do Partido dos Trabalhadoras e do mandato do ex-deputado federal pelo PSOL-RJ Jean Wyllys, ao lado de elogios à Operação Lava Jato.

Ele diz que manterá a divulgação dos índices, mas que em situações alarmantes os remeterá em primeira mão à Presidência da República e aos ministérios do Meio Ambiente e da Ciência.

Consequências e preocupações

O autointitulado “capitão motosserra”, Jair Bolsonaro, não anda só.

O governador do Acre, Gladson Cameli (PP), exortou os produtores rurais a simplesmente ignorarem as multas ambientais – depois disse que não era bem assim e lançou um plano de regularização.

No Pará – onde vem ocorrendo o maior volume de derrubada –, o governador Helder Barbalho (MDB) cancelou a cobertura da Polícia Militar às operações do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), em sintonia com a retirada do respaldo da Força Nacional pelo Ministério da Justiça.

Diante do vácuo do poder público, fazendeiros paraenses organizaram um “dia do fogo”, uma espécie de festa da queimada, no sudoeste do estado para mostrar serviço ao presidente. Em Roraima, os Yanomami estimam em 20 mil os garimpeiros instalados no seu território.

Pipocam reações de diferentes naturezas. Em entrevista coletiva sobre o mais recente relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), o vice-presidente de um dos grupos de trabalho, o alemão Hans-O. Pörtner, foi categórico diante de pergunta sobre o que estava acontecendo no Brasil: “É exatamente o contrário do que o documento recomenda”.

O governo alemão retirou o equivalente a R$ 150 milhões do financiamento de projetos na Amazônia – recebendo do parceiro a resposta “Pegue essa grana e refloreste a Alemanha, tá ok?” – e menciona a possibilidade de provocar a revisão do acordo entre a União Europeia (UE) e o Mercosul. A Noruega também anunciou a suspensão dos repasses ao Fundo Amazônia, um vazio da mesma ordem.

O boicote a produtos brasileiros com pé na devastação já tinha sido mote, em março, de um artigo de 602 pesquisadores na revista científica Science, dirigido aos comandantes da UE.

Jornais como The New York Times, Washington Post, The Guardian e revistas como The Economist defenderam medidas parecidas.

Oito dos nove ex-ministros e ex-ministras do Meio Ambiente do período democrático publicaram carta conjunta prevendo prejuízos na balança comercial e pedindo que os tomadores de decisão pensem nas gerações futuras. Primeiro de uma série de apelos sem precedentes, o manifesto já citava o discurso contra os órgãos de controle, iniciado na campanha eleitoral.

No protesto mais recente, manifestantes pediram a saída do “ministro de Destruição” na frente do hotel onde ele participava de reunião com seus pares do BRICS. Num cartaz, a caricatura do advogado, trajando uma camiseta que traz a logo do Ibama de ponta-cabeça e empunhando uma motosserra, enquanto árvores viram carvão ao fundo.

 

Imagem de satélite mostra centenas de focos de incêndio (assinalados com cruzes vermelhas) ao longo da BR 163, sudoeste do Pará, no que os fazendeiros chamaram de “dia do fogo” (Imagem: Inpe)

Para exportar, não é necessário desmatar

Demonstrando o comparativo na plataforma MapBiomas, Gilberto Câmara destaca que o Brasil dobrou sua safra de cereais e leguminosas (de 100 milhões para 200 milhões de toneladas) e elevou em 20 milhões de cabeças o rebanho bovino nas regiões Norte e Centro-Oeste, entre 2004 e 2014. No mesmo período, o desmate caiu de 27 mil para 5 mil quilômetros quadrados (km2) ao ano.

“O aumento da produção e das exportações convive muito bem com o controle do desmatamento e a redução das pastagens”, conclui.

Parte do “agro” vem numa toada parecida, com marcos como a moratória da soja, de 2008, quando a pressão dos importadores levou gigantes do ramo a se comprometer a não comprar produção de áreas recém-desflorestadas.

As justificativas passam pelo bolso e pela responsabilidade. O diretor-geral da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag) posicionou-se contra a extinção da reserva legal – proposta do senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), filho mais velho do capitão reformado, que também quer alterar a definição constitucional de função social da propriedade, na qual se inclui o respeito à natureza.

Até ex-contemplados com a “motosserra de ouro” mostram preocupação especialmente com o risco de o acordo com a Europa desandar.

A senadora e ex-ministra Kátia Abreu (PDT-TO), defensora contumaz dos agrotóxicos, criticou falas de Bolsonaro e declarou-se convertida à preocupação com a sustentabilidade. “Abri meus olhos e aprendi o quanto a Amazônia era importante para garantir as chuvas no sul e centro do Brasil”, disse em entrevista na qual também afastou a possibilidade de flexibilização da proteção ambiental pelo Senado.

Outro ex-ministro, Blairo Maggi – dono da maior trading de capital nacional –, acaba de afirmar que a retórica agressiva pode levar o setor à “estaca zero”.

Na última sexta-feira (9), a Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura lançou relatório ressaltando que, embora melhorias sejam bem-vindas, o Brasil é pioneiro e referência em monitoramento de vegetação e uso da terra. A frente é integrada por cerca de 200 membros, dos quais a maioria representa o setor privado do agronegócio (agricultura, pecuária e silvicultura, bem como a agroindústria) – caso da Abag –, ao lado de organizações ambientalistas e de acadêmicos. No evento de lançamento, dividiram a mesa o executivo Beto Mesquita, de empresa que explora soluções sustentáveis, e o cientista Carlos Nobre.

Finalidades

Nobre foi um dos idealizadores de um seminário, no ano passado, para discutir as ferramentas disponíveis, suas aplicações e sua confiabilidade. O evento científico gerou o documento que a coalizão julgou adequado lançar agora, em função do debate em torno do tema.

Segundo o climatologista, os sistemas para estimar áreas alteradas mais automáticos, baseados em algoritmos de inteligência artificial, operam numa margem de erro na faixa de 20%. Com sistemas com calibragem mais fina, como o Deter, a margem de incerteza cai para cerca de 12%. E no Prodes, que o Inpe usa para calcular a taxa anual de desmatamento, essa margem desce a 6%.

“Existe aqui o sistema de uma empresa privada que consegue uma margem de erro de 2%. É um produto que exige o conhecimento de especialistas. Há 50 deles envolvidos. Cada imagem é revisada, revisada, revisada seguidamente”, narra o pesquisador, que se aposentou pelo Inpe, depois de três décadas integrando seus quadros.

Tal ferramenta, ele ressalta, tem uma finalidade diferente da do Deter. É contratada por empresas para ver, por exemplo, se uma plantação de cana está com alguma doença.

Já o sistema de detecção em tempo real do Inpe processa uma enorme quantidade de informações e suas imagens são remetidas diariamente ao Ibama. “O Deter captura bem a tendência, mostra o ritmo do desmate, e é essencial para a fiscalização”, diz o climatologista.

Ele comenta que esse tipo de ferramenta subestima a área desflorestada e não erra para cima, como os detratores procuram fazer crer. A taxa anual do Prodes, que usa uma resolução melhor (fotografa polígonos menores), fica sempre acima do acumulado de 12 meses do Deter.

Ou seja, os 2.254,9 km2 de devastação detectados em julho – 278% acima do verificado no mesmo mês de 2018 – não devem ser levados ao pé da letra, mas indicam uma “febre” intensa, ainda mais porque o ano passado, de eleições municipais e com ruralistas na cabine de comando, já foi de alta.

Os apelos e esclarecimentos de pesquisadores e gestores não fazem a cabeça de Salles. Reportagem de O Estado de S. Paulo, nesta quinta (15), revela que o Ibama, autarquia ligada ao Ministério do Meio Ambiente, já roda em caráter experimental o sistema privado da empresa Planet que o titular do MMA promove. A matéria conta que o governo do Mato Grosso adotou a ferramenta, ao passo que o Pará fez o test-drive e o atual governador preferiu não contratá-la.

Segundo o Observatório do Clima (OC), há 11 sistemas de sensoriamento remoto de vegetação no território nacional, dos quais três se somam ao Deter na vigilância da Amazônia em tempo real.

Em artigo no El País, o coordenador de comunicação do OC, Claudio Angelo, afirma que hoje é possível fazer monitoramento automático com a qualidade do Prodes. “Qualquer ruído nos dados introduzido pelo tal sistema de monitoramento que Salles quer comprar será imediatamente desmentido pelos outros sistemas e pelo MapBiomas”, garante. De acordo com Angelo, a parte “quente” dessa plataformajá fornece ao governo – de graça – a validação dos alertas do Inpe, da ONG Imazon, da Universidade de Maryland (EUA) e do Exército com imagens da Planet, evitando “falsos positivos” de corte proibido.

Interesses

Na leitura de Carlos Nobre, a contestação dos dados e a promoção da supressão ilegal de vegetação interessam a dois grupos. O primeiro, com maior representação política, seria o “ruralismo atrasado”, desconectado dos avanços científico-tecnológicos e vinculado à expansão de fronteiras e à ostentação do latifúndio. O outro, o crime organizado, que nesse universo se baseia na grilagem e na exploração de madeira fora da lei.

Em contraponto, ele analisa que a agricultura moderna valoriza a manutenção de mosaicos (composição de áreas vizinhas com usos e graus de proteção variados), em que o cultivo convive com florestas. “Elas oferecem uma série de serviços ecossistêmicos como polinizadores, manutenção da fertilidade do solo e diminuição dos extremos climáticos, que são prejudiciais à produção”, lembra.

Nobre alerta para a aproximação do ponto sem retorno em que a Amazônia pode se transmutar numa formação mais seca e com vegetação mais espaçada e arbustiva, semelhante a áreas degradadas do Cerrado. “Se o corte ultrapassar 20 a 25% da área amazônica [como um todo, não só no Brasil], existe um risco muito grande de o sistema se desestabilizar. Se isso acontecer, a floresta não volta”, enfatiza o cientista, que participou da elaboração de seis dos relatórios mundiais do IPCC e assessorou a Secretaria Geral da ONU.

Autor que lançou, há quase 30 anos, a tese sobre o risco de savanização daquele bioma e coordenou o Experimento de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera (LBA), ele defende a necessidade de se chegar ao desmatamento zero até 2030 – zerar a desflorestação como um todo, não só a prática à margem da lei.

 

Carlos Nobre recebeu em 2016 do Volvo Environment Prize, concedido a pessoas que fizeram notáveis descobertas científicas sobre o meio ambiente e o desenvolvimento sustentável (Foto: Associação Brasileira de Ciências)

Uma batata quente, portanto, na mão do diretor interino Darcton Damião, que se declarou indeciso – “Não é a minha praia” – diante de pergunta sobre o aquecimento global e a responsabilidade humana no fenômeno.

Com mestrado em sensoriamento remoto pelo próprio Inpe e doutorado em desenvolvimento sustentável pela Universidade de Brasília (UnB) – sua tese versou sobre análise multivariada para a predição de tendências de desmatamento –, ele tem perfil adequado ao cargo, na avaliação de Nobre e outras pessoas ligadas à área.

O entrevistado ressalta que Damião construiu uma carreira de gestor e não de cientista. Tem pouquíssimos artigos listados no seu currículo Lattes, nenhum nos últimos 15 anos, ao passo que ocupou cargos de direção ligados a pesquisa e tecnologia em grandes empresas (Vale Soluções em Energia e Usiminas), além de ter dirigido o Instituto de Estudos Avançados da Aeronáutica.

“As pessoas da ciência têm a cabeça aberta. Se ele for uma, tem a melhor chance da vida para perguntar aos especialistas e receber uma aula sobre as mudanças climáticas”, diz o estudioso do processo que desafia a civilização com seu horizonte de intensificação de cheias e secas, quebra de safras, globalização de doenças tropicais, extinção de espécies e desaparecimento de cidades e até países-ilha.

Edição: Rodrigo Chagas

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