Ricoy, Extra e Habib’s: A violência da segurança privada no Brasil

Ricoy, Extra e Habib’s: A violência da segurança privada no Brasil

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Número de empresas de vigilância cresce 60% em 8 anos e país já tem mais agentes particulares do que policiais militares.

Igor Carvalho
Brasil de Fato

Quando a câmera do diretor pernambucano Kleber Mendonça passeia por uma quadra poliesportiva completamente cercada por muros e grades, dentro de um condomínio, retrata crianças e adolescentes que se apinham por um mínimo espaço para o lazer e um descanso ao sol. Na mesma sequência, babás se escoram nos muros enquanto vigiam os filhos da classe média recifense, amedrontada e cada vez mais sedenta por segurança.

A cena é do filme “O som ao redor”, produzido em 2010 [mas que chegou aos cinemas em 2012], quando o Brasil vivia o final do governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A narrativa já alertava para o ambiente favorável para o crescimento no fornecimento do serviço de segurança privada.

Dados de 2010, da Associação Brasileira de Empresas de Segurança e Vigilância (Abrevis), mostram que havia 1.491 empresas de segurança privada no Brasil à época. Em 2018, esse número saltou para 2.398, um aumento de 60,83%, de acordo com o “Estudo do Setor da Segurança Privada”, elaborado pela Federação Nacional das Empresas de Segurança e Transporte de Valores (Fenavist).

Olhar para o alto índice de agentes contratados por essas empresas dá a dimensão do tamanho do setor. O Brasil já possui mais vigilantes do que policiais militares. Eles estão em toda parte, transporte, mercados, agências bancárias, escolas, hospitais, restaurantes, bares, entre outros.

De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o Brasil possui 480 mil policiais militares espalhados pelos27 estados da Federação. O número é menor do que o efetivo de vigilantes contratados por empresas de segurança, 553 mil, de acordo com a Fenavist. Um aumento de 16% em relação ao ano de 2010, quando eram 477 mil agentes.

“Cada vez mais, há uma proliferação de espaços ocupados por esse serviço. De uma forma geral, nos diferentes governos e países, se estimula que determinados segmentos sejam policiados por segurança privada, porque o Estado não vai garantir segurança em locais como cinema, bares, transporte, shopping, restaurantes e outras instituições públicas diversas”, explica o cientista político André Zanetic, autor de “A questão da segurança privada: Estudo do marco regulatório dos serviços particulares de segurança”, sua dissertação de mestrado na Universidade de São Paulo (USP).

Paulo César Ramos, sociólogo e pesquisador do Núcleo Afro do Centro Brasileiro de Análise Planejamento (Cebrap), afirma que o inchaço no setor é fruto o discurso do medo que se espalhou pelo Brasil e que a tendência é que os números de empresas e agentes cresçam.

“Eu acho que esse fenômeno específico das empresas privadas, está na mesma esteira de ampliação da esfera privada para o espaço da esfera pública. Essa privatização do mundo está colocada como desenvolvimento de uma lógica liberal que alcançará um certo pico que não permitirá mais espaço para espraiar. Então, todo mundo precisa ter sua própria segurança e sua própria polícia. Todo mundo quer se armar e ter uma arma. Dessa forma, a dimensão do público desaparece”, argumenta o sociólogo.

 

Tortura e policiais no controle

Em franca expansão, o setor tem sido, não de hoje, alvo de denúncias que apontam um comportamento violento dos agentes. No dia 2 de setembro deste ano, se tornou público um vídeo que mostra um segurança do Ricoy Supermercados, em São Paulo, chicoteando um adolescente de 17 anos, negro, por ter tentado roubar chocolate.

Dois dias depois, outras imagens reveladas pelo Brasil de Fato, mostram vigilantes do Ricoy torturando psicologicamente uma criança. “Você vai ficar em uma cela cheio de moleques da sua idade, ou mais velho, tem uns lá que gostam de abusar de outro moleque. Olha que legal. Tem uns que vão te dar uma surra bem dada. Olha que legal”, afirma o segurança para o menino. Nas fotos, um homem aparece amarrado e chicoteado.

Um outro vídeo mostra um homem sendo torturado na unidade Morumbi do Extra Hipermercados, zona sul da capital paulista. Nas imagens, o vigilante, assistido por dois funcionários do comércio, aplica choques nas extremidades do corpo de um sujeito que é acusado de tentar furtar carnes.

Em fevereiro de 2017, João Vitor, um menino de 13 anos, morreu após ser agredido por seguranças da unidade do restaurante Habib’s na Vila Nova Cachoeirinha, bairro da zona norte de São Paulo. Imagens mostram que o menino, após ser atacado, é arrastado pelo chão e tem suas roupas arrancadas pela força dos puxões.

Para especialistas, a explicação para a violência empregada por vigilantes de empresas de segurança pode estar na origem desses empreendimentos. “Quem são os donos dessas empresas de segurança? Os policiais. Eles são os donos e mão de obra dessas empresas. Inclusive, durante o próprio horário de trabalho, eles atuam como segurança privada e eu estou convencido que isso tende a piorar”, afirma Ramos.

 

 

André Zanetic, professor da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e cientista político, com pós-doutorado no Núcleo de Estudos sobre a Violência (NEV) da Universidade de São Paulo (USP), confirma a origem. “É comum, é muito comum. É comum porque é o trabalho que policiais e militares ligados ao Exército fizeram a vida inteira. Então, quando eles aposentam, acabam fundando essas empresas”, atesta.

No caso do Ricoy, os agentes são funcionários da KRP Zeladoria Valente Patrimonial. A empresa tem entre seus sócios o ex-tenente coronel Cláudio Geromim Valente. O Extra mantém sob contrato a Comando G8, que cuida da segurança da unidade do Morumbi, e que tem como fundador um ex-militar do Exército.

Os casos do Extra e do Ricoy passaram pelas mãos de Eduardo Valério, promotor de Direitos Humanos do Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP), que é responsável por um procedimento preparatório de inquérito civil contra os comércios e que vê ligação entre os casos. “Suspeito que haja um modus operandi comum nessas empresas, diante dessas práticas de furtos ou pequenos furtos em supermercados. Precisamos, de algum modo, avançar em uma investigação desse tipo”, assinala.

Para Valério, é preciso superar a ideia de uma polícia de confronto e treiná-la para que “seja uma polícia de composição”.

“A verdade é que hoje a sociedade brasileira vive sob um pensamento militarizado e de conflito e a ideia da polícia como um inimigo – e não a ideia da polícia como tendo um povo a se proteger – muda a maneira de todos os atores envolvidos agirem. Agora, é uma ilação, porque não sabemos exatamente se todas essas empresas estão, ou não, envolvidas em um pensamento militar, mas é uma possibilidade, sabemos que a maior parte dessas empresas são ligadas a policiais, inclusive as envolvidas nesses casos”, explica o promotor.

O sociólogo Paulo César Ramos também considera que a violência tem relação com os policiais. “É uma extensão do treinamento militar porque os donos das empresas são policiais. Vai junto com esse policial a inteligência e o treinamento dele, sobre quem é o criminoso e o suspeito padrão. É a mesma moral e a mesma tecnologia sendo importada das forças policiais para as empresas de segurança privada. Essas empresas privadas reproduzem tudo de pior que as polícias militares fazem nos espaços públicos”, compara.

Legislação

O Decreto de Lei 1.034, que regulamenta a criação de empresas privadas no Brasil, é de 1969 e autoriza que bancos contratem segurança particular para suas sedes e para o transporte de dinheiro entre agências, para evitar assaltos e roubo de cargas.

Desde então, a legislação sofreu interferências e as principais modificações dizem respeito ao registro do trabalhador. Para se tornar um vigilante no Brasil, é preciso ter mais de 21 anos, ser brasileiro, não possuir antecedentes criminais e estar em dia com as obrigações militares e eleitorais. Além disso, é obrigatório um curso de 200 horas, em que o candidato recebe orientações sobre direitos humanos, combate a incêndios, primeiros socorros, armamento, tiro, defesa pessoal e outros temas.

A pesquisa da Fenavist traçou um perfil dos vigilantes brasileiros. São, em sua maioria, homens (90,3%), com ensino médio completo (69,9%) e com idade entre 30 a 39 anos (38,9%). Em 2014, os seguranças privados tinham um ganho médio de R$ 1.702. O valor saltou para R$ 2.139 em 2018.

Edição: Rodrigo Chagas

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