Por Luciana Oliveira – Estava tudo certo para o retorno de mais de 600 famílias de camponeses e camponesas ao acampamento Thiago Campim dos Santos em Nova Mutum Paraná, nesta terça-feira, 27.
Uma reunião foi feita no dia anterior com vários órgãos governamentais e entidades da sociedade civil para acertar os detalhes do cumprimento da decisão da Ministra do Supremo Tribunal Federal, Cármen Lúcia, que suspendeu ordem de reintegração de posse no último dia 20 numa área de mais de 57 mil hectares ocupada desde março de 2020. Um pedido de reconsideração da decisão foi negado pela ministra dois dias depois.
“Em relação ao pedido de ID n. 62870153, mantenho o despacho de ID n. 60145113, pelos fundamentos invocados na decisão de ID n. 49420946. A reintegração de posse no imóvel já foi realizada, sendo evidente que os requeridos estão descumprindo a ordem judicial, o que resta evidente no pedido de reconsideração”.
Uma Missão de Solidariedade composta por representantes de diversas organizações de defesa dos direitos humanos, Ministério Público Federal, Defensoria Pública, Comissão Pastoral da Terra e advogados populares foi ao local do conflito para acompanhar a volta dos camponeses a seus lotes.
Após seis dias de despejo com relatos de abusos e humilhações praticados por policiais a realocação dos camponeses abrigados em condições inadequadas na Escola Municipal Santa Júlia, na Vila da Penha, foi iniciada com dois micro-ônibus com a assistência social da prefeitura da capital e do governo do estado. Muitas famílias despejadas já haviam saído da escola e aguardavam autorização para o retorno à área.
Há denúncias de camponeses que adoeceram pelas condições insalubres a que foram submetidos e pelas acomodações absolutamente inapropriadas, muitos não permaneceram na escola.
Todo o esforço para a transferência das famílias com seus móveis, colchões e utensílios domésticos foi em vão.
Uma barreira com mais de 20 policiais armados com fuzis impediu o acesso ao acampamento em flagrante descumprimento da decisão da ministra e submetendo às famílias à mais humilhação com extremo cansaço em estrada sem iluminação, água e comida.
A Polícia Militar não informa o efetivo empregado na operação, nem identifica nomes no fardamento, mas na base montada no local havia mais de uma centena, além da Força Nacional e de todo o aparato tecnológico, viaturas e helicóptero.
Só alguns membros da Missão de Solidariedade puderam se reunir com o comandante da Polícia Militar, coronel Alexandre Luís de Freitas Almeida, que impôs condições ao retorno das famílias com os pertences que conseguiram preservar durante a operação.
Os jornalistas foram barrados na reunião e até o fim das negociações registraram cenas de desespero das crianças que imploravam por água e numa tarde de sol quente.
O comandante afrontou a decisão de Cármen Lúcia exigindo identificação de todos os camponeses e o acompanhamento individual a seus lotes. Segundo advogados populares, essa ilegal exigência é uma retaliação pela decisão judicial que sacramentou o fracasso da operação que custou muito dinheiro e sofrimento do povo em luta por terra e trabalho.
“Foi acima de tudo uma grande vitória contra a máfia da grilagem, para a qual o estado de Rondônia mobiliza suas forças para proteger. É a resposta vesga e irresponsável da PM à decisão da ministra manter os camponeses nessa situação caótica e desumana”, disse um advogado que não quer ser identificado.
O clima tenso, escuridão e a estrada em péssimo estado de tráfego tornaram inviável a exigência do comando da operação e após muita interferência da comissão que falou pelos camponeses a realocação foi adiada para esta quarta-feira.
A Polícia Militar só quer permitir o retorno dos que estavam abrigados na escola.
SOBRE A ÁREA
A terra em disputa é reivindicada pela empresa Leme Empreendimentos de propriedade de Antônio Martins, conhecido como o ‘Galo Velho’ citado no ‘Livro Branco da Grilagem de Terras’ como um dos maiores grileiros do estado.
Ele também apareceu na CPI da Grilagem por possuir mais de 80 mil hectares de forma suspeita (fls. 361 do Relatório da CPI destinada a investigar a ocupação de Terras Públicas na Região Amazônica – 2001) e em julho de 2020 foi alvo da Operação da ‘Operação Amicus Regem’ que cumpriu mandados de busca e apreensão em Porto Velho (RO), Brasília (DF), Cuiabá (MT), São Paulo e Itaituba (PA) que investiga organização criminosa que fatura milhões com fraudes em compra de terras.
Segundo relatório da Associação Brasileira de Advogados do Povo, “A ocupação do imóvel pelas famílias camponesas do Acampamento Tiago dos Santos foi realizada em 22 de junho de 2020, num processo de pressionar o INCRA a resolver a situação do imóvel e dar ao mesmo a destinação correta. O imóvel possui uma área de mais de 57 mil hectares, tinha mais de 600 famílias no imóvel e toda uma vida social e coletiva estruturada, que compreendia espaço de estudo para as crianças, inclusive com acesso à internet para as crianças que precisavam realizar aula online; farmácia com atendimento básico, cozinha coletiva, espaço da igreja e organicidade interna”.
Na área vivem mais de 600 famílias camponesas que produzem em terra destinada apenas à especulação fundiária, segundo a Liga dos Camponeses Pobres. Para o movimento, são sem-terra e desempregados que durante a pandemia foram ainda mais atingidos pela vulnerabilidade social.
O comando da Polícia Militar nega os relatos e vídeos de abusos no despejo amplamente divulgados nos meios de comunicação e redes sociais, mas permanece na área impedindo o retorno dos camponeses e o cumprimento da decisão de suspensão reiterada pela ministra Carmén Lúcia, inclusive com exigências que não lhe competem.
A Abrapo identificou mais de uma dezena de ilegalidades do cumprimento do despejo à suspensão e realocação, entre elas, a inobservância da Resolução Nº 10, de 17 de outubro de 2018 do Conselho Nacional de Direitos Humanos sobre conflitos fundiários e a Recomendação Nº 90, de 2 de março de 2021, que dispõe sobre desocupações coletivas durante a pandemia.
O procurador da república, Raphael Benviláqua esteve no local e confirmou a legitimidade da decisão e da luta do movimento por ocupação para fins de reforma agrária.
Para ele, o movimento não pode ser criminalizado.
“A gente recebeu muitas denúncias de que estaria havendo criminalização dos movimentos sociais de luta pela terra, isso não só de hoje e não só desse acampamento e também não só da Liga dos Camponeses. Pessoas sendo intimidadas, perseguidas, intimidadas na sua atuação e nós, como interlocutores entre a sociedade civil e o estado estamos aqui para garantir que as entidades possam atuar na forma livre, ampla e necessária que elas têm, para colher os depoimentos, entender o que está acontecendo e fazer com que isso chegue às autoridades e fazer com que as violações cessem e os direitos sejam minimamente atendidos”, disse o procurador.