Trabalho escravo: a barbárie que o “agro” esconde

Trabalho escravo: a barbárie que o “agro” esconde

Em mapas, retrato do aprisionamento de trabalhadores, 134 anos após a “abolição”. Por trás de lavouras de cana e usinas, 11,3 mil resgatados das senzalas contemporâneas em 25 anos. É a face oculta do setor “mais moderno” do agro

Por Mateus de Almeida Prado Sampaio e Mirlei Fachini Vicente Pereira

Do Outras Palavras

Passados 134 anos da abolição da escravidão no Brasil (13 de maio de 1888), o que hoje denominamos como trabalho análogo ao escravo persiste e figura como uma marca de nossa formação socioespacial. Trata-se de um conceito que revela práticas atualizadas, se não de um trabalho absolutamente forçado e completamente não remunerado (como histórica e comumente compreendemos o trabalho escravo), ao menos de um trabalho que expõe homens e mulheres a graves riscos, ferindo a legislação trabalhista em vigor no país e continuadamente reforçando a condição de vulnerabilidade e desigualdade social da população mais pobre e fragilizada.

Pela definição do Ministério do Trabalho e Previdência, “considera-se trabalho realizado em condição análoga à de escravo a que resulte das seguintes situações, quer em conjunto, quer isoladamente: a submissão de trabalhador a trabalhos forçados; a submissão de trabalhador a jornada exaustiva; a sujeição de trabalhador a condições degradantes de trabalho; a restrição da locomoção do trabalhador, seja em razão de dívida contraída, seja por meio do cerceamento do uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, ou por qualquer outro meio com o fim de retê-lo no local de trabalho; a vigilância ostensiva no local de trabalho por parte do empregador ou seu preposto, com o fim de retê-lo no local de trabalho; a posse de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, por parte do empregador ou seu preposto, com o fim de retê-lo no local de trabalho” (MTP, 2022).

Faz tempo, temos continuadamente insistido na análise e divulgação de pesquisas que apontam as vulnerabilidades territoriais decorrentes do avanço das atividades agropecuárias e agroindustriais espacialmente seletivas, socialmente excludentes e ambientalmente insustentáveis (ELIAS, 2017), especialmente as resultantes do setor sucroenergético (produção de cana-de-açúcar e derivados). Presente em diferentes regiões do território brasileiro, com importância econômica histórica e expressiva participação em nossa pauta de exportações até os dias de hoje, o setor sucroenergético é um misto daquilo que há de mais moderno na produção agrícola e agroindustrial no país (como divulgam instituições que o representam) e também de traços arcaicos reveladores da forma como território e sociedade foram e continuam sendo historicamente explorados no processo produtivo.

As práticas do setor sucroenergético constituem exemplo nítido de como a perversa superexploração do trabalho figura como estratégia de acumulação que permanece entre nós, em pleno século XXI. É isso o que revela os dados do Ministério do Trabalho e Previdência (BRASIL, 2022), quando avaliamos as ocorrências de trabalho análogo ao escravo resultantes das atividades do setor nas últimas três décadas. De 1996 a 2021, 84 autuações ligadas ao trabalho análogo ao escravo envolvendo o setor sucroenergético ocorreram no Brasil, que, somadas, totalizam mais de 11.300 trabalhadores expostos à tal condição.

Mapa 1: Brasil – Trabalhadores libertados de situação análoga à escravidão na atividade sucroenergética (1996-2021)

Mapa: elaboração própria dos autores

Comumente atrelado à produção agrícola, o trabalho análogo ao escravo no cultivo de cana-de-açúcar (CNAE 113000) representou no referido período 69% das ocorrências, sendo o restante ligado ao trabalho de fabricação de etanol (CNAE 1931400, 22%) e de açúcar (CNAE 1071600, 8%), indicando que grupos do setor utilizam de tais mecanismos mesmo em suas unidades fabris.

Ainda que seja evidente a diminuição de ocorrências quando se compara a segunda década do século atual frente a primeira (quando a série de dados aparece completa), há que se destacar que as ocorrências permanecem e com grande número de trabalhadores envolvidos. Em operação recente, o Ministério Público do Trabalho de Minas Gerais resgatou no final de janeiro de 2022, em três fazendas produtoras de cana-de-açúcar no município de João Pinheiro, 273 trabalhadores em situação análoga à escravidão (MPT-MG, 2022). Trata-se do maior registro em território brasileiro deste tipo de infração nos últimos dez anos. Tal problema, como fora dito, é cíclico – para tomarmos os exemplos apenas de Minas Gerais, em 2009, no município de Limeira do Oeste, 184 trabalhadores foram resgatados em condições análogas à escravidão; em 2010, no município de Capinópolis, foram 207. Naquela ocasião os casos supracitados tornaram-se ainda mais graves por envolverem a participação de um ex-ministro da Agricultura e um ex-senador, indicando que os mecanismos perversos de despossessão são praticados inclusive por agentes diretamente ligados ao Estado.

Elo fragilizado da relação capital-trabalho, os trabalhadores recentemente resgatados em João Pinheiro eram expostos a condições degradantes de trabalho no campo, além de condições muito precárias de alojamento (MPT-MG), o que caracteriza trabalho análogo ao escravo. As fazendas que foram alvo da operação de resgate dos trabalhadores, conforme divulgado na mídia (MONCAU, 2022) eram arrendadas pela usina WD Agroindustrial, grupo que tomou no BNDES, apenas em dezembro de 2020, R$ 62 milhões em crédito para financiamento da aquisição de máquinas, equipamentos, materiais industrializados e/ou de capital de giro associado, recurso a princípio voltado para modernizar as práticas de trabalho agrícola. Por mais de 25 anos o grupo teve acesso sistemático ao BNDES Finame Agrícola, programa especificamente direcionado à aquisição de máquinas e equipamentos; implementos agrícolas; caminhões e componentes relacionados; bens de informática e de automação, ou seja, tudo aquilo que teoricamente deveria promover o aumento da produtividade e da qualidade do trabalho agrícola e reduzir a brutalidade desses serviços. Frente a tais evidências, podemos afirmar que os fundos públicos (resultado do esforço coletivo da nação) se prestam a financiar a superexploração do trabalho junto às classes mais pobres da população.

Mapa 2: Área de atuação da Usina WD e municípios de seu entorno (2022)

Mapa: elaboração própria dos autores

Como o primeiro mapa indica, Minas Gerais não é caso isolado, nem restrito, apenas o mais recente. Os casos envolvendo maior número de trabalhadores (com mais de mil resgatados) ocorreram na primeira década do século atual nos estados do Mato Grosso, Pará e Mato Grosso do Sul, mas há vários registros menores nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná, Goiás, região concentrada do território e onde o agronegócio é comumente divulgado como atividade moderna e eficiente. As infrações também não resultam apenas das práticas de grupos pequenos, não modernizados e de caráter “familiar”, como o próprio setor costuma argumentar. Gigantes do setor como a Cosan já figuraram na “lista suja” do trabalho escravo (PYL, 2010), ainda que seja considerada como uma das empresas mais modernas do setor (hoje inclusive com capital aberto em bolsa de valores), revelando, portanto, perversidades da relação capital-trabalho no setor.

Para além dos problemas típicos do setor sucroenergético, implicando em especializações produtivas que muitas vezes aprofundam a dependência econômica e vulnerabilidades territoriais, em pleno 2022, a ocorrência de situação análoga à escravidão (no Sudeste do Brasil, espaço de referência da produção sucroenergética), revela o quanto o agronegócio, tão defendido pelo Estado, alçado pelo mercado como via de desenvolvimento e ícone da produção da riqueza nacional, ainda produz mazelas sociais desta envergadura. Urge repensarmos os efeitos territoriais e sociais de tal modelo, bem como valorizarmos as alternativas de produção e de uso do território que figuram como resistência ao agronegócio.

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