Mês: março 2024
Ponte Brasil-Bolívia quer escoar produção do agro, mas não considera desmatamento e impacto nas comunidades
InfoAmazonia, Por Fábio Bispo – O projeto ainda não prevê impacto ambiental significativo em região com 49 terras indígenas e 86 unidades de conservação. Prioridade no novo PAC, a ponte tem conclusão prevista para 2027 e deverá conectar áreas produtoras do agronegócio do Brasil e Bolívia a portos no Atlântico e Pacífico.
É neste ponto da fronteira que o governo federal vai construir a ponte binacional Brasil-Bolívia, um pedido histórico do agronegócio brasileiro, uma das obras prioritárias do novo Projeto de Aceleração do Crescimento (PAC). A licitação foi lançada no final do ano passado com a promessa de consolidar a ligação transoceânica, conectando as regiões produtoras do Brasil e da Bolívia aos portos com saída para o Atlântico, na bacia amazônica, e para o Pacífico, principalmente nas cidades de Arica, no Chile, e Illo, no Peru.
Com um custo inicial de R$ 430 milhões e previsão de conclusão da obra em 2027, o projeto quer impulsionar o escoamento da produção do agronegócio em uma das regiões mais desmatadas da Amazônia. O principal objetivo é viabilizar a exportação brasileira a custos mais baixos para outros continentes e países, especialmente para China, que é o principal parceiro comercial da América do Sul e que está construindo a maior estrutura portuária do continente em Chancay, a 600 quilômetros da capital peruana Lima. Com a nova ponte, uma viagem à China, por exemplo, levaria 12 dias a menos do que atualmente, podendo gerar uma economia de até 30% nos custos de logística.
“A ponte é uma vértebra da espinha dorsal que vai finalmente ligar o Brasil a esses países e que envolve uma série de outros projetos de rodovias, ferrovias e hidrovias. A infraestrutura, de fato, é uma questão importante nessa região da Amazônia, mas a questão é que não se discute esse desenvolvimento dentro de um planejamento estratégico, em como ele vai se relacionar com as populações locais”, aponta pesquisadora Marta Cerqueira Melo, que estuda a integração logística Brasil-Bolívia da perspectiva das relações internacionais no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP-PUC/SP).
Economia para o agro com custo alto para a floresta
Essa economia financeira e logística prevista para o agro não leva em conta, pelo menos até agora, os riscos para a floresta e as comunidades tradicionais. A ponte binacional está inserida no projeto da denominada Zona de Desenvolvimento Sustentável Abunã-Madeira (SDZ), que abrange 32 municípios nos estados de Amazonas, Acre e Rondônia, região também chamada de AMACRO, para criação de um pólo agrícola.
Nessa região, estão pelo menos 49 terras indígenas (TIs) e 86 unidades de conservação (UCs), incluindo territórios com presença de povos isolados em áreas que já estão invadidas, como é o caso das TIs Karipuna, Igarapé Lage e Uru-Eu-Wau-Wau; e das UCs Parque Estadual Guajará-Mirim e Reserva Extrativista Jaci-Paraná. A expansão de áreas produtivas do agronegócio na AMACRO tem intensificado os conflitos no campo nessas áreas protegidas, como é o caso da Terra Indígena Igarapé-Lage, a mais próxima do local onde será erguida a ponte.
“A soja já está chegando na terra indígena e foi uma evolução rápida. Até pouco tempo, era tudo pasto, agora já tem lavouras encostando nos territórios”, conta Eva Kanoé, liderança do povo Kanoé em Rondônia e integrante do Conselho de Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB).
Eva conta que o projeto não foi apresentado à comunidade e que muito menos se falou em consulta. “As nossas terras já estão sendo invadidas e devastadas. Agora mesmo, com a lei do marco temporal e com todas essas obras, as invasões aumentaram. Estamos desprotegidos, preocupados, mas com coragem para seguir na luta”, afirma.
Ligação com outras obras
A ponte também deverá integrar os portos dos oceanos Atlântico e Pacífico a outras obras polêmicas na Amazônia, como a reconstrução da BR-319, entre Porto Velho e Manaus (AM), apontada como um dos grandes vetores de desmatamento da Amazônia; a hidrovia do rio Madeira, por onde já ocorre escoamento de grãos para os portos do chamado Arco Norte
; e pode facilitar a construção de novas usinas no Complexo Hidrelétrico do Madeira, que já conta com duas barragens em operação: Santo Antônio, logo acima de Porto Velho, e Jirau, a 110 quilômetros rio acima, perto da fronteira com a Bolívia.
“Junto com a ponte, vem a viabilidade dos projetos hidrelétricos e da hidrovia para facilitar toda a expansão desse modelo do agronegotóxico (sic). O plantio de soja já está avançando pelas vicinais e afetando as terras indígenas, comunidades ribeirinhas e pescadores”, afirma o historiador Iremar Antônio Ferreira, fundador do Instituto Madeira Vivo (IMV) e membro do Comitê de Defesa da Vida Amazônica na Bacia do Rio Madeira (COMVIDA).
Ferreira afirma que há risco de violação dos direitos dessas populações por falta de estudos ambientais adequados “que não consideram os efeitos sinérgicos da obra” e o descumprimento de consultas prévias, livres e informadas às comunidades, como estabelece a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que garante aos povos tradicionais o direito de serem consultados sobre todo e qualquer projeto ou ato administrativo que afetem seus territórios.
“São propostas que se conectam nessa grande integração de infraestrutura para viabilizar projetos de desenvolvimento dos governos e empresas que arrancam o nosso povo do seu lugar. Nós, enquanto povos desta bacia do Madeira, defendemos projetos de envolvimentos, que incluam as comunidades, não esses que nos excluem e nos matam”, completa Ferreira.
Uma das preocupações é de que o desmatamento e os casos de conflitos sejam ampliados, a exemplo de outros empreendimentos que mantêm relação direta com o aumento do desmatamento na região, como é o caso das obras das usinas hidrelétricas, da BR-319 e da Transamazônica, citados frequentemente como impulsionadores da devastação.
Em março deste ano, um estudo publicado na Perspectives in Ecology and Conservation aponta que só o fato de o governo anunciar a criação do polo agrícola na AMACRO foi suficiente para atrair produtores rurais e fazer o desmatamento na região disparar.
A pesquisa aponta que, ao contrário dos possíveis benefícios econômicos da zona integrada, o desmatamento pode levar a perdas socioeconômicas e afetar condições ambientais e climáticas essenciais para a atividade agropecuária no Brasil. Os autores destacam a importância de um planejamento prévio antes da implantação dos projetos da zona de desenvolvimento para evitar uma catástrofe regional.
AMACRO concentrou 34% do desmatamento na Amazônia
A AMACRO, com seus 45 milhões de hectares (ha), representa 8,9% da área total da Amazônia brasileira (501,5 milhões ha), mas registrou, em 2022, 34% de todo o desmatamento do bioma no país, com 440 mil ha de floresta devastados, segundo dados de desmatamento anual do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Em dez anos, o desmatamento nessa região cresceu mais de 400% e em uma intensidade até duas vezes maior do que a registrada nas demais áreas da Amazônia, segundo análises da InfoAmazonia com base nos dados do Inpe. A maior parte desse desmatamento está concentrada em Porto Velho, que, em 10 anos, foi a segunda cidade mais desmatada de toda a Amazônia.
Esse avanço da produção agrícola, movido à destruição das áreas de floresta, também impõe uma reconfiguração dos polos produtivos, cada vez mais ao norte, e de distribuição de commodities como soja, milho e carne, que estão migrando dos portos e das estruturas alocadas no Sudeste para serem escoados pela região Norte, barateando os custos com transporte e logística.
Em 1985, existiam 1,6 milhões de hectares de áreas de agropecuária em Rondônia e 20,6 milhões de hectares de florestas. Em 2022, a área ocupada pela agropecuária atingiu a marca de 9,2 milhões de hectares (+475%), enquanto a cobertura por floresta caiu para 13 milhões de hectares (-36,9%%), segundo dados da rede MapBiomas.
Para Laura Vicuña, missionária do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) em Rondônia, o projeto de integração binacional vai na contramão das promessas do governo do presidente Lula (PT) — eleito com com o compromisso de proteger a Amazônia e os povos tradicionais — e amplia o descumprimento de decisões judiciais que já determinam a desocupação de terras indígenas da região.
“Temos decisões do STF [ADPF 709] para retirar os invasores das terras indígenas que não estão sendo cumpridas. E essa pressão vai aumentar ainda mais com esse corredor transoceânico que vai afetar toda a região da AMACRO. Nós temos visto o governo comemorar a redução de desmatamento na Amazônia, mas aqui, na prática, não é isso que vemos”, afirma a missionária.
A pesquisadora Marta Cerqueira Melo também vê posicionamentos contraditórios do Estado brasileiro, que coloca essas situações como irresolvíveis, principalmente, pela divisão que aglutina a classe política e empresarial de um lado e as comunidades e povos tradicionais de outro.
“Se existe a necessidade dessas infraestruturas para atender a economia, ela tem que ser pensada no contexto que se insere. Por que não prever uma governança que inclua a proteção ambiental? Por que não se leva universidades para essas regiões? O Estado não pode ser dependente apenas de um segmento, e o agronegócio não pode se expandir sem limites”.
A pesquisadora cita o contexto global dos países da América do Sul, que têm a China como principal parceiro comercial, e as limitações que o canal do Panamá enfrenta com a crise climática, “com períodos de seca que interrompem o fluxo de navios”, afirma. Atualmente, o canal é a principal rota dos navios que saem do Atlântico com destino à Ásia.
Consultado pela reportagem, o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) informou que o projeto da ponte binacional está na fase inicial de licenciamento e que o processo para liberação do empreendimento “terá como base a apresentação de Estudo de Impacto Ambiental
e Relatório de Impacto Ambiental
“Os estudos ambientais deverão analisar os efeitos sinérgicos da implementação do empreendimento, assim como indicar os principais impactos ambientais previstos por sua execução e operação. A avaliação sobre o projeto será realizada a partir de tais subsídios técnicos”, afirmou o órgão.
O Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) informou que a licitação para obra da ponte está em prazo de recursos, e que o resultado da empresa que vai realizar o projeto e construção da estrutura deve ser homologado na segunda quinzena de abril.
Roças, castanheiras e igarapés ameaçados
A Reserva Extrativista (Resex) Rio Ouro Preto, em Rondônia, é uma das primeiras unidades de uso sustentável criadas no Brasil para abrigar famílias de seringueiros, e está a menos de 30 quilômetros do ponto de travessia do rio Mamoré, que ao se encontrar com o rio Madre de Dios, que atravessa o Peru e a Bolívia, forma o rio Madeira, principal tributário da bacia do Amazonas. A conversão de áreas de floresta para produção de gado na região motivou um pedido de retirada de 20 mil hectares da área protegida.
“Antes ainda existia uma área de amortecimento, hoje em dia não existe mais, e a pecuária já está dentro da unidade de conservação. Tanto que estamos fazendo um desmembramento de uma área de 20 mil hectares por causa do gado. Não são 20 metros. Para a gente, futuramente vai fazer falta”, explica Edvaldo Souza da Costa, presidente da Associação dos Seringueiros Agroextrativistas do Baixo Rio Ouro Preto (Asaex).
Dentro da Resex, 178 famílias vivem da extração da borracha, coleta de castanha e da agricultura familiar. “A questão é que estamos cercados e tememos que o veneno das lavouras também afete as nossas roças e nossos castanhais”, conta a indígena Tapuya Mura, que nasceu na Resex e junto com o marido, Lucas Mura, pratica agricultura familiar em sistema agroflorestal.
No sítio da família, eles cultivam mandioca, café, milho de sementes crioulas utilizadas há várias gerações, e promovem o plantio de novas castanheiras como forma de garantir mais oferta da noz brasileira consumida mundialmente. “Plantar uma castanheira é como deixar uma herança para nossos filhos e netos. Mas até isso está ameaçado”, emenda Tapuya.
A sensação de crescimento da soja por parte dos moradores da Resex Rio Preto se comprova em números: ela se espalha exponencialmente em Rondônia. Na safra de 2011/2012 eram 107,6 mil hectares do grão plantados no estado, em 2023, foram contabilizados 544,1 mil hectares, segundo dados do governo de Rondônia.
Em audiência na Câmara dos Deputados para debater a construção da ponte binacional, em abril do ano passado, o secretário de governo da Prefeitura de Porto Velho, Fabrício Grisi Médici Jurado, informou sobre a expansão das grandes empresas do agronegócio na região.
“Toda semana estamos recebendo grandes empresas que estão se instalando na nossa capital. Recebemos recentemente o grupo Cargill, que tem expandido negócios na região, Amaggi, Hidrovias do Brasil, que vai montar um porto em Porto velho para ampliar o comércio da hidrovia do Madeira”, disse.
Boa parte da bancada rondoniense na Câmara e no Senado, que apoia a construção da ponte, é composta por fazendeiros com propriedades na região da AMACRO, como os senadores Marcos Rogério (PL-RO), que foi relator da lei do marco temporal, Jaime Bagattoli, cuja família, de acordo com o De Olho Nos Ruralistas, se diz dona de fazendas em terras indígenas, e o deputado federal Lúcio Mosquini (MDB-RO), autor do chamado PL da Grilagem, e dono de fazendas próximas a áreas invadidas na Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau.
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Consumo de carne de quelônios é parte da cultura amazonense, mas caça predatória é maior ameaça
Infoamazonia, por Adrisa de Goés – Quelônios, que incluem tartarugas, cágados e jabutis, fazem parte da alimentação da população desde que os colonizadores chegaram ao rio Amazonas. A carne foi incorporada à mesa, principalmente, das comunidades ribeirinhas e tradicionais. No entanto, fiscalização fragilizada no interior do estado e caça predatória ameaçam as espécies e a biodiversidade amazônica.
A alimentação à base de quelônios, que incluem tartarugas, cágados e jabutis, é um hábito culturalmente conhecido por ribeirinhos e comunidades tradicionais do Amazonas. Moradores do estado entrevistados pela InfoAmazonia afirmam que a carne é “raramente consumida”, mas essencial para as populações da região. Há controvérsias sobre a exploração desses animais como fonte de subsistência, mas a ameaça à biodiversidade está na caça predatória, como indicam dados do Batalhão Ambiental da Polícia Militar do Amazonas (BPAmb): entre 2013 e 2023, foram apreendidas 4.551 unidades oriundas de caça ilegal no estado.
Esses números apontam, no entanto, para uma subnotificação da caça ilegal, ligada à falta de fiscalização no interior do Amazonas. Em 2021, a bióloga Willandia Chaves, pesquisadora no Departamento de Conservação de Peixes e Fauna Silvestre da Universidade Virginia Tech, nos Estados Unidos, liderou um estudo para contabilizar o número real de carne de tartaruga que chega aos domicílios do estado. O levantamento indicou que foram consumidas, em média, 1,7 milhão de unidades por ano. Manaus corresponde a cerca de um terço desse total.
A pesquisa da bióloga contrasta com os dados oficiais, que, além de muito mais baixos em comparação com os do estudo, mostram uma oscilação, ano a ano. Por exemplo, em 2021, quando Chaves estimou uma média na casa dos milhões, ocorreram 183 apreensões no estado, segundo o BPAmb.
À InfoAmazonia, o Batalhão Ambiental diz que “tem atuado através de fiscalização resultante de denúncias, bem como operações integradas com os órgãos de proteção ambiental”. O órgão afirma que a principal motivação, que põe esses animais na mira de infratores, é a comercialização ilegal da carne e ovos das espécies. A reportagem insistiu por diversas vezes – tanto por telefone, quanto por e-mail – para entender qual é o padrão de fiscalização (frequência e efetivo) no estado, mas, até a publicação, não recebeu uma resposta do órgão do Amazonas.
Na esfera federal, o órgão responsável pelas ações que envolvem o controle de animais silvestres é o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). No portal do órgão, não estão disponíveis os dados de apreensões de quelônios. A InfoAmazonia enviou perguntas e pediu os números ao escritório da instituição em Brasília, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.
Costume à mesa
Na Amazônia, encontramos diversas espécies, como a tartaruga-da-amazônia, que pode alcançar até 90 centímetros de comprimento e 65 quilos, depositando entre 100 e 150 ovos anualmente. Já o tracajá atinge cerca de 50 centímetros e 12 quilos na vida adulta, e é diferenciado por manchas amarelas na cabeça em filhotes e machos adultos. O iaçá, ou pitiú, é uma das menores espécies do gênero Podocnemis, alcançando até 34 centímetros de comprimento e 3,5 quilos, com uma média de 16 ovos postos em praias durante a desova. Essas três espécies estão entre as mais capturadas pela caça e, de acordo com a plataforma de dados “Salve”, do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), integram a lista de animais quase ameaçados de extinção do bioma.
O consumo dessas tartarugas como fonte de alimento está associado ao cotidiano dos amazonenses pelo menos desde o século 16, quando os colonizadores chegaram ao rio Amazonas e encontraram a floresta habitada por povos indígenas.
A reportagem foi até a área do Porto de Manaus e da Manaus Moderna, região central da capital amazonense onde a circulação de pessoas é mais intensa. Indígena da etnia Sateré Mawé, o autônomo Marco Antônio Costa de Souza, 18 anos, nasceu na capital e admite já ter consumido tracajá e tartaruga-da-amazônia. Para ele, o alimento é tido como um prato servido à mesa apenas em ocasiões importantes, como em aniversários de parentes indígenas ou em festas de fim de ano.
“A minha avó fazia receitas indígenas com quelônios e era cultural dentro de casa, muito para ela relembrar das raízes dela, já que ela se casou com o meu avô, que tinha descendência portuguesa. Com isso, ela optou por preservar esse costume na família. Meu familiares também fazem esse consumo raramente, assim como eu. Até porque temos a consciência de preservação”, disse.
Atualmente morando em uma área ribeirinha do município de Autazes (a 111 quilômetros de Manaus), a operadora de caixa Denise Magalhães dos Santos, 37 anos, também conta que já consumiu tracajá em suas refeições e concorda com Marco Antônio: “é tradição [o consumo], um costume da gente comer essa comida que faz parte do cotidiano do ribeirinho. Não que a gente coma várias vezes. É mais no final do ano ou quando sai pra caçar eventualmente”, ela afirma.
Orlandina Silva de Almeida, doméstica, 57 anos, afirma que o consumo desses animais, muitas vezes, tem uma outra razão: a falta de outros alimentos. Ela conta que já viveu em comunidades ribeirinhas e que, em muitos períodos, a insegurança alimentar preocupa a população, que recorre à carne de caça.
“Eu já morei no interior do Amazonas. Cheguei a consumir o tracajá e também fiz o consumo dos ovos. Naquela época, não era como agora, que é proibido. Na época, que meu pai morava no interior, não era. Essa é a alimentação do ribeirinho no Amazonas (…) Quando eu comi foi mais uma questão de necessidade. Tem períodos, pra quem vive no interior, que a comida é escassa, então as pessoas vão se alimentando do que vai aparecendo”, explicou à InfoAmazonia.
A Lei de Crimes Ambientais n.º 9.605, de 1998, estipula que a retirada de quelônios da natureza sem autorização de órgãos oficiais e o comércio desses animais são considerados crimes ambientais. O não cumprimento dessa legislação pode resultar em detenção, variando de seis meses a um ano, além de multa. No entanto, há uma exceção quando a caça é realizada por necessidade alimentar, ou seja, para saciar a fome do caçador ou de sua família.
A pena pode ser aumentada em 50% se o crime for praticado contra espécies raras ou ameaçadas de extinção. O aumento também se aplica se o crime ocorrer em período proibido à caça, em unidades de conservação ou com o uso de métodos capazes de provocar destruição em massa. No caso de crime ambiental durante a caça profissional, a pena é triplicada.
Ameaça ao ecossistema
Paulo Andrade, doutor em Biologia de Água Doce e Pesca Interior pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e professor da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), tem experiência na criação e manejo de animais silvestres, incluindo os quelônios. Ele afirma que a interferência desenfreada do homem pode desencadear desequilíbrios no ecossistema, já que essas espécies desempenham um papel fundamental na cadeia alimentar animal.
Peixes como aruanã e piranha, assim como jacaré, gavião e, ainda, mamíferos, a exemplo da mucura, onça e gato maracajá, se alimentam de tartarugas. Esse ciclo garante a manutenção da fauna da Amazônia, em que um ser vivo serve de alimento para o outro.
“Aqui, na Amazônia, os filhotes de quelônios, os ovos, os próprios animais adultos e subadultos servem de alimento para outras espécies de animais, tanto do ambiente aquático quanto do ambiente terrestre, da zona de transição da praia, onde vivem os quelônios. Então, os filhotinhos de quelônios quando nascem, filhotes de tartaruga-da-amazônia, por exemplo, e os ovos que elas botam, são fonte de proteína para uma série de animais”, explica o pesquisador.
Outro papel ecológico dos quelônios, segundo Andrade, é a dispersão de sementes na natureza, contribuindo para a regeneração de florestas e áreas naturais. Essa função é crucial para a preservação da biodiversidade, já que esses animais se alimentam de uma variedade de frutas, legumes e folhas, criando condições ideais para a germinação de sementes após a digestão.
“O principal impacto da caça de quelônios no meio ambiente é retirar essa fonte de alimentação, essa base da cadeia alimentar dos outros animais. Onde temos mais quelônios, temos mais de tudo: mais peixes, mais jacarés, mais aves aquáticas, entre outros. É um efeito multiplicador. E quando não se tem, ou seja, quando há caça, diminui tudo ao ponto de quase levar a uma situação de extinção no local. As outras espécies que se alimentam desses animais vão sentir e, consequentemente, reduzir bastante”, destaca o pesquisador.
Andrade também é coordenador-geral do Projeto Pé-de-Pincha, fundado em 1999 no município de Terra Santa, no Pará. O projeto trabalha na conservação comunitária dos quelônios em cerca de 20 cidades do Amazonas, realizando atividades sociais para sensibilizar a população sobre a preservação das espécies. Isso inclui palestras de educação ambiental para crianças, além do manejo e da soltura de quelônios.
“A ação [do projeto com a comunidade] protege, principalmente, no período reprodutivo, para impedir que os animais adultos sejam capturados, que os ovos sejam retirados, que os filhotes sejam comercializados”, diz.
Já a Secretaria de Estado de Meio Ambiente (Sema) afirma que realiza um trabalho direcionado à proteção e ao aumento das espécies de quelônios nos rios do Amazonas. Essa atividade conta com o apoio de Agentes Ambientais Voluntários (AAV) capacitados pela pasta, de comunitários e, em algumas Unidades de Conservação (UCs), em colaboração com integrantes do Projeto Pé-de-Pincha.
Os monitores percorrem praias, campinas ou barrancos em busca das covas onde as fêmeas depositam seus ovos durante a descida dos rios. Ao encontrá-las, as covas são demarcadas e monitoradas até a eclosão dos ovos. Em situações de maior ameaça, os ovos são realocados em “berçários”, ambientes que reproduzem o habitat natural dos animais.
Após o nascimento, os filhotes são transferidos para tanques, onde ficam por 60 dias até atingirem um tamanho seguro para serem soltos. Desde o início do projeto, em 2018, até 2023, 1,9 milhão de quelônios foram devolvidos à natureza, nas 14 Unidades de Conservação Estaduais que realizam o monitoramento.
Esta reportagem é resultado de uma formação realizada pela InfoAmazonia no âmbito do projeto Conservando Juntos, implementado pela Internews em aliança com a USAID e a WCS.
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Filtro
“No passado, a censura funcionava bloqueando o fluxo de informação. No Século XXI, ela o faz inundando as pessoas de informação irrelevante.
Não sabemos mais a que prestar atenção e frequentemente passamos o tempo investigando e debatendo questões secundárias.
Em tempos antigos ter poder significava ter acesso a dados. Atualmente ter poder significa saber o que ignorar”.
Yuval Noah Harari
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