A professora da FGV Eloísa Machado, uma das coordenadoras do trabalho junto com a também docente Vivianne Ferreira, explica que a análise se insere no âmbito do Projeto de Prática Multidisciplinar “35 anos do ECA: Avanços e retrocessos – Pesquisa, diagnóstico e incidência”. “A ideia era avaliar o quanto essa lei [o ECA] ainda tem capacidade de regular problemas novos que se apresentam”, observa. E o levantamento mostrou que ainda há muitas questões sem resposta do ponto de vista legal quando se fala dos influenciadores mirins.
Trabalho artístico?
Como é um tipo de atividade relativamente nova, ainda não existem muitos estudos aprofundados sobre os impactos que essas crianças podem ter em função da sua exposição. O panorama atual é bem distinto, por exemplo, daquele vivido por atores e atrizes mirins do cinema ou da televisão.
“Analisando histórias antigas de artistas da TV que viveram essa exposição, o que vemos é um cenário mais exacerbado de exposição do que era com a televisão. Um cenário com bem menos regulação e que hoje é parte integrante da nossa cultura, por isso, se torna pouco percebido”, avalia Luiza Nicchio, uma das autoras do estudo, fazendo referência ao fato de que, como quase toda a população adulta hoje acessa redes sociais, a inserção de crianças nesse meio passa a ser vista como algo quase natural.
A pesquisa estuda uma analogia entre a atividade de influencer e o trabalho infantil artístico, uma “exceção” contemplada no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em seu artigo 149 que estabelece, no entanto, que será preciso alvará ou portaria judicial sempre que a criança, ou adolescente, participar do que é considerado “espetáculo público”.
Como se destaca no paper, a legislação não cita expressamente a permissão ao trabalho artístico infantil, “havendo apenas a disposição de que algo do gênero seria permitido e delimitado pelo juiz no caso concreto ou pelo Judiciário, de forma geral, mediante Portaria”. “O ponto do trabalho é realizar uma aproximação com essa suposta exceção da lei que o ECA trata, já que acabou se aceitando que a atuação de atores mirins fosse interpretada como atividade artística”, explica Rafaela Melo, uma das autoras.
Por “aproximação e com uma interpretação ampliativa”, o grupo de pesquisadores encontra pontos de conexão com a atividade artística. Porém, a norma não tem sido aplicada nos casos em que crianças exercem a atividade de influencer, o que demonstra a ausência de parâmetros legais específicos sobre a atividade.
“É importante reiterar que estamos vivendo essa lacuna, que não é nova, vem desde a análise do ator mirim, que dependia do alvará e era um cenário em que muitos atuavam de forma irregular”, pontua Rafael Diz, também autor. “Nós percebemos uma lacuna legislativa muito grande em relação a quais são os deveres das plataformas que permitem que a superexposição aconteça. Supostamente, no Instagram ou em outros tipos de redes não poderia ter crianças abaixo de 13 anos”, ressalta outra autora, Mariana Millani.
Mesmo o entendimento da atividade de influencer mirim como artística poderia ser insuficiente para a proteção de direitos. “Há questões peculiares relativas à condição do trabalho artístico infantil em redes sociais. Existem diversos problemas de desrespeito à privacidade, superexposição da imagem, além de violação do direito à honra”, aponta-se no texto. “Finalmente, a necessidade de constante criação de conteúdo gera grandes dificuldades à concretização de outros direitos como lazer e educação. Tendo isso em mente, fica claro que há uma condição específica neste trabalho que não parece permitir o completo enquadramento na classificação de trabalho artístico.”
Os autores ressaltam que a Resolução nº 245 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente trouxe, em abril, uma contribuição importante em relação à proteção dos direitos das crianças e dos adolescentes nos ambientes digitais, “com princípios orientadores que devem ser observados pela família, empresas, poder público”. No entanto, trata do ambiente digital e como ele deve respeitar direitos principalmente dos utilizadores, não abordando o trabalho artístico exercido por crianças nas redes sociais.
O papel de plataformas e empresas
“Existe uma razão pela qual o trabalho infantil é proibido e, mesmo quando se é permitido, existe um esforço para regular e minimizar os efeitos disso na criança”, pontua Maria Rita Pilon, uma das autoras. “Na internet existem efeitos de superexposição maximizados.”
O ambiente digital, de fato, oferece riscos maiores e evidentes, mas, no caso dos influencers mirins, há um problema que é comum a outras situações problemáticas: a ausência de regulamentação e possibilidade de responsabilização das plataformas de conteúdo.
Eloísa Machado define o cenário como um “deserto regulatório”. Não existem, entre outros tantos pontos, parâmetros sobre a quantidade de horas que uma criança pode usufruir das redes sociais e se isso deve ser ou não permitido. “É um debate incipiente no Brasil e muito pela postura das plataformas serem avessas a qualquer tipo de regulação”, pontua.
“Em relação a esse tópico das crianças influenciadoras, o trabalho dos estudantes mostra que não estamos lidando apenas com um álbum de família digital, mas sim com um mercado que movimenta milhões, estabelecendo parcerias com empresas e gerando questões sobre trabalho infantil e exposição nas redes sociais. É um ambiente onde as plataformas, os pais e as empresas têm responsabilidades evidentes”, explica.
O próprio estudo aponta, em sua conclusão, ser necessário um aprofundamento do ponto de vista normativo, afirmando que “o cuidado com estes indivíduos e com o trabalho desempenhado nas plataformas digitais deve ser tutelado de forma específica e localizada, de forma a garantir direitos, a segurança, e o melhor interesse da criança, conforme previsto na legislação brasileira e os padrões internacionais de cuidado à condição da criança e do adolescente”.
Após a conclusão do trabalho, o diagnóstico foi apresentado a membros da Comissão de Comunicação e Direito Digital do Senado Federal. O colegiado analisa o Projeto de Lei nº 2.628, de 2002, chamado de PL do ECA Digital.