Defensor dos indígenas isolados, Rieli Franciscato morre com uma flecha no coração, em Rondônia

Defensor dos indígenas isolados, Rieli Franciscato morre com uma flecha no coração, em Rondônia

Da equipe de reportagem da Amazônia Real

Foto de Mário Vilela/Finai/2014)

O sertanista estava monitorando um grupo de indígenas que se aproximou desde o mês de junho de uma comunidade rural em Seringueiras 

Manaus (AM) – Um dos maiores sertanistas atuando com grupos de indígenas isolados na Amazônia, Rieli Franciscato, de 55 anos, foi atingido por uma flecha no coração ao se aproximar de povos sem contato por volta das 17h (horário de Brasília) desta quarta-feira (9) na região da linha 6 em Seringueiras, na divisa da Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia. O sertanista, que estava acompanhado de indígenas e policiais militares, foi levado para um hospital, mas já chegou sem vida.

Coordenador da Frente de Proteção Etnoambiental Uru-Eu-Wau-Wau da Fundação Nacional do Índio, Rieli foi um dos fundadores nos anos 1980 da organização Etnoambiental Kanindé com a amiga e ambientalista Ivaneide Cardozo. Ele também trabalhou nas frentes de monitoramento na Terra Indígena Vale do Javari, no Amazonas, junto com o sertanista Sydney Possuelo

À agência Amazônia Real, Ivaneide contou que, na manhã de quarta-feira (9), conversou ao telefone com Rieli Franciscato. Ele estava monitorando de longe o grupo de indígenas conhecido como “Cautário”. Desde junho, esse povo vinha aparecendo na zona rural de Seringueiras. O sertanista, que defende o não contato com os isolados, atuava para evitar um conflito entre o grupo e a população da localidade, mas o trabalho era precário e sem estrutura.

“O Rieli estava ali para proteger aqueles índios, mas os isolados não sabem quem são amigos ou inimigos. A região dos isolados está queimando. A gente vem com preocupação há dias com isso. A gente tinha informação de invasões naquela região. O Rieli estava super preocupado. Se os isolados estão saindo e atacando, é porque alguém está atacando os isolados”, afirma Ivaneide. 

Em áudio que a Amazônia Real teve acesso, Rieli comentava com a amiga uma de suas últimas preocupações. “Ô Neidinha, pra mim, naquela viagem amanhã, não tem como. Acabei de receber informação que os índios apareceram na [linha] 6 e vou ver essa situação. Não vou ter nem gente para colocar lá. O Clayton [servidor da Funai] está acamado possivelmente esteja com covid”, disse Rieli.

Descaso do governo

Mapa do Território Uru-Eu-Wau-Wau, onde Rieli trabalhava, infestado por queimadas

“A culpa da sua morte é o descaso e a incompetência da Funai e dos que hoje orbitam em volta desse presidente da Funai e do Coordenador de Índios Isolados”, criticou o sertanista Sydney Possuelo, ex-presidente do órgão. Para ele, a circunstância da  morte de Rieli demonstra o descaso e a irresponsabilidade do governo de Jair Bolsonaro (sem partido) com relação às questões que envolvem os índios e os funcionários das Frentes de Proteção Etnoambiental, “que são a vanguarda dos trabalhos na selva”.

“O governo consegue destruir a Funai como instituição, desamparando os funcionários que estão na missão mais difícil e perigosa e, acelerando o processo de destruição dos povos indígenas Isolados ou não.” 

O indígena Moisés Campé, de 35 anos, era parceiro do sertanista da Funai há cinco anos e estava com Rieli no momento do ataque por flechas dos isolados. Campé disse que fazendeiros tinham visto os isolados na zona rural do município de Seringueiras e comunicaram o caso à Funai. Ele, Rieli e  dois policiais militares foram até a região para conversar com os fazendeiros e orientá-los caso os indígenas aparecessem novamente. Eles deixaram a base Bananeira, de proteção aos isolados, por volta das 13 horas, e após conversar com os moradores partiram para buscar por vestígios dos isolados.

Como foi o ataque?

Flecha que matou o sertanista Rieli Franciscato (Foto divulgação) 

Por volta das 17 horas entraram na mata, bem no limite da Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau. Andaram cerca de 30 metros, e quando subiam um morro uma flecha foi disparada, atingindo Rieli direto no peito. Campé afirma que eles não viram os isolados, apenas ouviram depois o barulho deles correndo. “A gente não esperava isso porque não são indígenas de conflito. Alguma coisa está diferente. Perdemos um grande parceiro”, lamentou.

A amiga Ivaneide Cardozo comentou ainda da dificuldade que Rieli enfrentava em seu trabalho. “Ele não tinha muita gente para ir com ele, porque, infelizmente, essa Funai não dá condições para os funcionários. Ele era um dos maiores defensores dos índios isolados e morreu dando a vida pelo que ele sempre defendeu”, disse. “Sua maior preocupação era que esse pessoal que está na Funai quer fazer o contato, e que ele faria de tudo para isso não acontecer.”

Rieli Franciscato era de uma família de agricultores que migraram do Paraná, onde nasceu, para Mato Grosso e Rondônia. Foi nesse último Estado que ele teve contato, pela primeira vez, com indígenas, da TI Rio Branco. Em entrevista para a Revista Brasileira de Linguística Antropológica, o sertanista confidenciou que em meados dos anos 1980 ele tinha uma visão preconceituosa. “E eu, de índio, sabia aquilo que aprendemos na escola! Não sabia nada, ou seja, sabia que o índio era sujo e que comia comidas diferentes, estranhas”, comentou. Mas sua proximidade e a forma como passou a compreender a dificuldade dos vizinhos indígenas o tornou um “especialista”, sendo convidado pela Funai, do Núcleo em Ji-Paraná, a integrar uma expedição em 1988, a Equipe de Localização dos Índios Isolados da Reserva Biológica do Guaporé. Desde então, nunca mais parou e Rieli se tornou uma das maiores referências do movimento indigenista no Brasil.

A repercussão da morte

Rieli Franciscato no 2º Encontro Etnoambiental da Frente de Proteção Uru Eu Wau Wau
(Foto: Mário Vilela/Funai/2014)

O sertanista aposentado Armando Soares lamentou a morte do amigo e, assim como Sydney Possuelo, atribuiu à falta de condições de trabalho a causa da trágica morte. “O Rieli era um cara experiente, com muito conhecimento, mas não tinha um pingo de condições de fazer o seu trabalho. Fazia no peito e na raça. Então, quando improvisa, olha o que acontece. Porque a Funai não dava condições para ele há muito tempo. Ele fazia tudo sozinho”, criticou Soares. O sertanista afirma que Rieli deveria ter auxiliares e equipamentos para poder investigar com muito cuidado. “Sinto muito por ele. Ele era um dos melhores. Mas sinto também pelos [indígenas] Uru-Eu-Wau-Wau e pelos Amondawa que perderam um grande parceiro”, resumiu.

Durante muitos anos, Rieli trabalhou na Frente de Proteção Etnoambiental do Vale do Javari, no Amazonas, junto dos Korubo. “Rieli era um indigenista com muitíssima experiência com os povos autônomos. Quando comecei a pesquisar sobre as relações dos Matis com os Korubo, no Vale do Javari em 2006, o conheci. Era bem reservado, mas foi generoso e me ensinou muita coisa sobre o trabalho de proteção e atenção que desenvolveu com os Korubo”, afirma a antropóloga Barbara Arisi. 

Barbara lembra que os Matis mais velhos como Txema e Tumi Branco respeitavam Rieli. “Achavam-no um cara justo e que não explorava os índios e os respeitava. Ele era dessa talha dos indigenistas que aprenderam com os índios a ser mateiros e admirar e valorizar o modo indígena de viver”, conta.

“É uma situação muito complicada para a gente, que tem uma missão na Funai. E estou há 33 anos na Funai. É uma situação que não queríamos que acontecesse”, lamentou o coordenador do órgão em Ji-Paraná, Claudionor Serafim. Ex-gestor do Parque Nacional de Pacaás Novo, João Alberto Ribeiro lamentou a morte de Rieli e até coloca em dúvida se o ataque partiu dos isolados. “É uma perda terrível para o indigenismo brasileiro, para o meio ambiente em Rondônia. Ele, com sua coragem e determinação, com apoio de parceiros, segurava a barra de invasões em toda frente da Uru-Eu-Wau-Wau com a BR-429, para o Mosaico Central de UC/TI de Rondônia e para os indígenas da Uru Eu incluindo os algozes, que infelizmente não tinham como saber quem é amigo e inimigo, se é que foi indígena”, diz.  (Reportagem de Elaíze Farias, Kátia Brasil, Maria Fernanda Ribeiro, Eduardo Nunomura e Marizilda Cruppe)

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