O fio da meada e a história da crise

O fio da meada e a história da crise

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Por Rogerio Dultra dos Santos
No Cafezinho

Estimulado pelo excelente artigo de Lucas Figueiredo no The Intercept Brasil de ontem, arrisco um preâmbulo com os 10 fatos históricos que podem jogar luz na conjuntura da semana.

Em seu artigo, Figueiredo examina os 30 fatos que explicam o fio da meada da história dos últimos dois anos, partindo da derrota de Aécio Neves nas eleições de 2014 até o caso Geddel-Temer.

O meu objetivo é mais genérico e menos analítico.

Faço um rápido apanhado da conjuntura de pulverização das instituições democráticas através da história das últimas décadas.

É uma espécie de guia fast-food para relembrar nossas misérias políticas mais cabeludas desde a Ditadura.

Através delas, fica reforçado o ponto central do artigo de Figueiredo, segundo o qual a ditadura e/ou o golpe de Estado só servem para salvar os seus próceres. O povo que é bom, continua afundado na crise.

E a história da crise – crise da democracia e da república – é bem mais longínqua do que parece. Senão, vejamos:

1 – A Ditadura Civil-Empresarial-Militar, iniciada em 1964 e programada para durar “até as eleições gerais de 1965” chega sob o signo da crise econômica em meados dos anos 70. Neste momento, ela vê surgir um movimento social completamente inesperado – o novo sindicalismo do ABC paulista – e a sua inconteste liderança: Lula.

2 – A luta armada contra a Ditadura, encabeçada por filhos e filhas da classe média brasileira, é dizimada ainda no início dos anos 70, mas tem como conseqüência a exposição da truculência e da violência do regime. As perseguições políticas, as prisões sem processo, as torturas e desaparecimentos sensibilizam a massa de brasileiros e o “suicidamento” do Diretor da TV Cultura Vladimir Herzog em 1975 faz surgir um movimento civil de contestação do regime, com apoio da Igreja Católica, expresso na “Missa dos 100 mil” em São Paulo. As condições políticas para a “abertura democrática” estão dadas.

3 – Sem capacidade política, econômica e internacional de insistir no regime, os generais apostam numa transição “controlada” para a democracia. A abertura desemboca na eleição indireta e negociada para Presidente da República em 1985. Tancredo Neves, eleito, morre na véspera da posse. Os generais, ao invés de se curvarem à Constituição e convocarem eleições, dão posse ao Vice, José Sarney, político oriundo da Arena, partido de direita, representante dos interesses do atraso.

4 – Em 1988 é promulgada uma Constituição de “compromisso”, que aponta para o sonho de direitos sociais e interesses democráticos, ao mesmo tempo em que assegura os privilégios corporativos diversos e se respalda politicamente em representantes eleitos sob a própria Ditadura. A Constituição “cidadã” abre uma avenida para um fortalecimento inaudito do Poder Judiciário e para a concentração monopolística dos meios de comunicação de massa.

5 – Em 1989, na primeira eleição direta para Presidente da República depois de duas décadas, Lula, agora fundador do Partido dos Trabalhadores, é derrotado por uma fração de votos por Fernando Collor de Mello – e após uma edição criminosa do último debate eleitoral pelo Jornal Nacional. Produto construído pelos meios de comunicação, sob viés moralista – o “caçador de marajás” –, Collor confisca o dinheiro das contas correntes de toda a população como medida econômica e é deposto em 1992, sob escândalo de corrupção.

6 – O impeachment de Collor, primeiro grande trauma político pós-Ditadura, sofreu influência decisiva dos meios de comunicação. Demonizado pelos mesmos veículos que patrocinaram sua candidatura, Collor, pode-se dizer, foi criado e destruído pelos semanários impressos e pela televisão. O deslinde jurídico também foi irregular, visto que mesmo Collor tendo renunciado tempestivamente, o Congresso Nacional ao invés de parar o processo, levou o impeachment como questão de honra, em violação aos preceitos legais e constitucionais – mas sob aplauso televisionado.

7 – Depois do governo-tampão de Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso é eleito em 1994. FHC aprofunda e profissionaliza o programa neo-liberal de Collor e acrescenta sua tese de desenvolvimento dependente: o Brasil só tem chance no mercado global se ficar à sombra dos EUA. Inaugura um amplo programa de privatizações, tenta vender a Petrobras sem sucesso e articula uma Emenda Constitucional que autoriza a própria reeleição. Apesar do sucesso da estabilização da moeda, deixa o governo em seu segundo mandato com o país endividado e com um dos piores índices de aprovação da história.

8 – Sem programa de governo, alternativas consistentes e dividida em inúmeros interesses e legendas, a direita sofre derrota histórica por Lula em 2002. O ex-operário é eleito e toma posse sob a pressão internacional para que execute um programa econômico ortodoxo. A direita vai para oposição política e se reorganiza sob a velha pauta moralista. Ainda com forte influência em instituições como o Congresso, a Polícia Federal, o MPF, o Judiciário e a mídia, a direita organiza uma CPI (a dos correios) que dá origem ao processo do “Mensalão” no STF. Liderada pelo PSDB, partido do ex-presidente FHC, a caça ao governo Lula, via criminalização, toma corpo.

9 – Sob forte bombardeio jurídico e midiático, Lula consegue ser reeleito em 2006 e se consolida como grande articulador, derrotando mais uma vez o PSDB. O seu segundo governo marca a ascensão do Programa de Aceleração do Crescimento, projeto desenvolvimentista de Dilma Rousseff, então Ministra Chefe da Casa Civil. Coordenando setores variados do sindicalismo e da burguesia nacional, Lula mira nos feitos econômicos e deixa rolar solto o massacre judicial e midiático contra as principais lideranças políticas do PT. Ainda assim, dado o sucesso econômico de seu governo, faz a sucessora e termina o mandato como o presidente mais popular da história do país.

10 – Eleita e re-eleita sob a sombra de Lula – e derrotando mais duas vezes o PSDB –, Dilma Rousseff não encontra o mesmo sucesso na economia e a mesma tranqüilidade para articulação política que seu antecessor. Em 2013 explodem as manifestações populares “contra tudo que está aí”. Em 2014 a “Operação Lava-Jato” inicia sua perseguição contra a base de apoio do governo e a mídia se encarrega de colar a pecha da corrupção no PT e nas esquerdas. Derrotada em 2014 pela quarta vez, a direita, representada pelo PSDB do candidato Aécio Neves, parte para a tática de desestabilização e entra em guerra aberta contra o governo Dilma. Encontra no Presidente eleito da Câmara, Eduardo Cunha, um aliado explícito. E no vice-presidente da República, Michel Temer, um ávido golpista.

A partir deste contexto histórico mais longo, não espanta o cipoal em que estamos metidos. Acrescente-se a isto os explícitos e agressivos interesses internacionais, a anabolização artificial dos extremismos e a receita do golpe aparece com clareza. Assim sendo, o impeachment de Dilma não tem realmente nada que ver com fim da corrupção, afirmação da democracia, interesses republicanos ou mesmo estabilidade política e econômica.

A nossa história recente escancara, com clareza, a pusilanimidade do golpe, a sua tendência em falsear instituições e, por fim, o caráter espúrio de seu garoto-propaganda, aquele cuja ética tem se mostrado francamente decorativa.

P. S.: Se Tancredo representa o Brasil que poderia ter sido e não foi, com Aécio, o Brasil que não queria ter sido insiste em tentar ser, violando tudo e todos no processo.

Publicado em: Democracia e Conjuntura

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