No meio do caminho tinha uma Unidade de Conservação

No meio do caminho tinha uma Unidade de Conservação

Levantamento inédito feito pelo CCCA, em parceria com ((o))eco, mostra ocupação de UCs em Rondônia como método para forçar redução ou reclassificação de áreas.

O Eco, CRISTIANE PRIZIBISCZKI – As mortes do jornalista inglês Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira, confirmadas pela Polícia Federal na última semana, escancararam a situação de abandono em que vive o sudoeste amazônico. Encorajados pela ausência do Estado, garimpeiros, grileiros, caçadores, traficantes e pescadores ilegais ocuparam a área usando o medo como forma de domínio. 

Esta ausência, no entanto, não acontece somente nessa porção da floresta, mas em muitas partes da Amazônia.  Para especialistas, não se trata de omissão ou descaso, mas sim um método no qual a ocupação irregular da área é facilitada para atender a interesses próprios ou de terceiros.

Rondônia é um dos estados que mais desmata na Amazônia. Segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), ele ocupa a terceira posição no ranking de unidades da federação com maior acumulado de destruição: somente entre 2008 e 2021 foram perdidos 14 milhões de hectares de floresta, o que representa 13% do total desmatado no bioma no período e equivale à metade do território da Bélgica.

Muito deste desmatamento tem ocorrido dentro das áreas protegidas. Segundo levantamento feito pela WWF, somente nos cinco primeiros meses de 2022 (janeiro a maio), 4.500 hectares foram desmatados dentro de unidades de conservação (UCs) e Terras Indígenas no estado.

A ocupação – ou antropização – de áreas protegidas é frequentemente utilizada como argumento para alterar os limites de uma unidade de conservação, como vimos na primeira reportagem da série. 

Essa foi a justificativa do Governo do Estado de Rondônia para, no ano passado, reduzir em 220 mil hectares o Parque Estadual de Guajará-Mirim e a Reserva Extrativista Jaci-Paraná.

Segundo Heron Martins, mestre em Uso Sustentável de Recursos Naturais em Regiões Tropicais e Analista de Dados do Centro para Análise de Crimes Climáticos (CCCA – Center for Climate Crime Analysis), o processo de desafetação, reclassificação ou extinção de uma área protegida, principalmente na Amazônia, não acontece porque a área já estava muito ocupada, como justificou o governo de Rondônia. O movimento é o contrário, diz ele.

“Existe uma metodologia muito bem implementada para se reduzir uma UC”, explica. O primeiro passo, segundo o analista, é a ocupação e descaracterização da área, muitas vezes incentivada e financiada por grandes proprietários de terra, que pagam para que pessoas menos favorecidas se estabeleçam dentro dos limites da unidade. Só depois é que a questão social e a pressão política pela desafetação são criadas. 

Arte: Julia Lima

Por fim, as pessoas que de fato estavam interessadas na área reivindicam o direito a ela, expulsando aqueles que elas mesmas incentivaram a ocupar ou comprando terras de forma muito barata.

“É uma descaracterização deliberada, um plano, um projeto. É algo bem articulado que conta, muitas vezes, com a falta de ação do governo. E por que o governo não age? Porque existem pressões políticas impedindo essa ação, então a descaracterização vai acontecendo, vai avançando e depois a pressão que era para impedir essas ações do governo, acabam se convertendo para reduzir a área protegida”, explica.

Heron Martins foi um dos autores de um estudo de 2014 que avaliou a pressão do desmatamento em áreas protegidas reduzidas na Amazônia. Segundo este trabalho, o desmatamento aumentou, em média, 50% nas áreas desafetadas das UCs, enquanto diminuiu 53% no seu entorno, o que demonstra a situação de pressão em que as áreas se encontravam. 

Ivaneide Bandeira Cardozo, conhecida como Neidinha Suruí, sabe bem do que Martins está falando. Vivendo em Rondônia desde a adolescência, a indigenista, que há 50 anos luta pela defesa da floresta e dos povos indígenas do bioma, convive diariamente com essa dinâmica de ocupação.

“O que tenho visto no campo, em unidades de conservação e Terras Indígenas, é desesperador. É a ilegalidade tomando conta de tudo, os grandes se apropriando dos espaços. Na Resex Jaci-Paraná, por exemplo, existem mais de 200 mil cabeças de gado dentro, então não é o pequeno produtor, os extrativistas, que se apropriaram da unidade, são os grandes”, explica.

Aumento na ocupação

Pelo Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), Reservas Extrativistas, como a Jaci-Paraná, citada por Neidinha Suruí, só permitem a ocupação por comunidades tradicionais. 

Um levantamento realizado pelo CCCA, no entanto, revelou que existe uma corrida para ocupação da Resex nos últimos anos.

Até 2018, existiam 93 propriedades particulares registradas no Cadastro Ambiental Rural (CAR) dentro desta unidade. Entre 2018 e 2021, mais 189 foram inscritas. A área total declarada como propriedade privada nesta terra pública é de 23.257 hectares, o que representa 12% da Resex. 

O registro no CAR é o primeiro passo para se tentar a regularização posterior da área e um meio de conseguir crédito rural.

Já os Parques Estaduais são unidades de proteção integral e não permitem nenhuma ocupação em seu interior. O levantamento do CCCA mostrou que a situação em Guajará-Mirim é oposta ao que diz a norma.

Até 2018, existiam 72 propriedades particulares registradas no CAR dentro deste parque. Somente nos últimos quatro anos (2018-2021), mais 114 propriedades foram inscritas no CAR, totalizando 64.449 hectares registrados como propriedades particulares dentro da unidade, ou 29% de seu total.

“Tivemos um aumento enorme do desmatamento em toda região nos últimos anos”, corrobora Neidinha.

Além dessas duas, o CCCA levantou os dados de CAR para outras 11 unidades de conservação alvos de recentes tentativas de exclusão ou redução feitas pelo Executivo e Legislativo rondoniense. Confira abaixo:

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